São Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 1995
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Querem arrancar seu fígado na marra

BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA FOLHA

Você se lembra, ó histriônico leitor, daquela cena do filme ``O Sentido da Vida", do Monty Python, em que uma equipe da saúde pública entra na casa de um cidadão e extirpa-lhe o fígado a sangue frio só porque na ficha do hospital consta que ele deveria doar o órgão naquele dia?
O esquete é uma sátira à burocracia governamental inglesa, mas em terras tapuias pode vir a ser mais do que uma ridicularização da realidade.
Sou favorável à doação de órgãos. Doei até uma de minhas córneas -a outra só doaria aos frequentadores do Café Cancun, uma vez que foi inteiramente retalhada em um acidente.
Quem desejar ter os órgãos pululando em outro ser após o esperado encontro com o Criador, que usufrua do direito, regulamentado por lei, de se tornar doador para transplantes.
Dito isto, sinto-me à vontade para afirmar que, caso essa lei em tramitação no Congresso transforme automaticamente todos os brasileiros em doadores, não hesitarei em mandar tatuar na testa a seguinte frase: ``Não dôo, não dôo e não dôo".
Pela lei atual deve-se expressar em vida o desejo de doar órgãos. A nova lei propõe o oposto: quem não quer doar que se manifeste.
A inversão é, no mínimo, discutível. Em um país com fendas intransponíveis dividindo ricos e pobres, pode-se prever o pior: o pedreiro foi parar no posto de saúde depois de se ralar caindo do andaime? Dá-lhe uma paulada e manda o coração dele para o abastado que está na lista do transplante. O atropelado entrou inconsciente no pronto-socorro? Pois que se extraiam seus rins para envio imediato ao hospital particular.
E o que dizer daquele lado podre da polícia? Será que os maus policiais não iriam passar a abastecer os núcleos de transplante com órgãos de ``bandidos" caçados na periferia?
Claro, nos últimos anos a medicina avançou, e muito, na área dos transplantes. O aumento no número de doadores se faz uma necessidade premente. Mas, em vez de radicalizar e perder tempo mudando uma lei que se equipara às existentes em países desenvolvidos, por que não avançar passo a passo com campanhas que incentivem a população a doar?

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