São Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 1995
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Anúncio apela para a culpa distante

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A Fundação SOS Mata Atlântica está pedindo donativos. Faz uso de um anúncio interessante, assinado pela agência DPZ.
A foto mostra quatro ou cinco roedores, um grupo de ratinhos selvagens -tudo indica tratar-se de uma mãe Ratinha e seus filhotes- contra um fundo de raízes e folhagens. Os bichos têm um ar preocupado; olhinhos arregalados, orelhas em riste. Eles se amontoam, miúdos, sob alguma urgente e invisível ameaça; o focinho, mais alongado que o de um rato qualquer, exprime pressa e medo.
Debaixo da foto, o título sensacional: "Homeless of Mata Atlântica". De fato, os bichinhos nada têm daquela "nobreza da vida selvagem, da beleza florestal que imaginariamente acompanha as espécies ameaçadas do planeta.
Águias, araras, tigres de Bengala, essa aristocracia do mundo animal, merecem donativos quase como imposto devido por nossa desgraciosa espécie de bípedes predadores. Salvar baleias, mais que ato de consciência ecológica, é homenagem ao espantoso, ao sublime, ao gigantesco.
Mas aqueles roedores da foto, francamente. Não têm nenhum apelo nas suas existenciazinhas bigorrilhas, farejantes, orelhudas. São uns animaizinhos de quarta categoria precisamente.
O anúncio tem uma grande astúcia psicológica. Os ratinhos são feios como os "homeless", os desabrigados da cidade grande; são a classe D da natureza. É por isso que nossa ajuda fica parecendo mais urgente.
A foto e o título vêm acompanhados de um texto. Vale a pena citá-lo com alguma generosidade de espaço.
"Andando um pouco pelas ruas de uma grande cidade, você logo se depara com uma cena constrangedora: um homem deitado na calçada. Mas a pressa e a indiferença fazem você seguir adiante, sem lembrar que o ligeiro inconveniente no meio do caminho se trata de uma pessoa. (...) Todo mundo vê o homem deitado na calçada, mas pouca gente olha para o problema. E menos gente ainda faz alguma coisa para resolvê-lo. E se ninguém faz nada para resolver um problema que acontece aqui na cidade, imagine um que acontece na Mata Atlântica.
O texto prossegue: "Com a destruição da Mata, muitos bichos ficaram sem teto para morar. Famílias inteiras perderam o ninho, a toca e, em alguns casos, a própria pele. Mas como nenhum deles sabe pedir a sua ajuda, nem dizer pelo amor de Deus, nós fazemos isso por eles.
Um detalhe complica a mensagem. Se a cena do primeiro parágrafo é "constrangedora", como diz o texto, não há lógica em afirmar, na frase seguinte, que para o leitor isso é apenas um "ligeiro inconveniente" e que "a pressa e a indiferença prevalecem".
Mas o detalhe é revelador, porque não há muita lógica mesmo no cotidiano de compaixões e incômodos, na mistura de proximidade e de distância de nosso convívio com a miséria urbana.
Só que o anúncio parece dizer: "Veja, temos desvalidos e carentes ainda mais coitadinhos do que os que você conhece. Trata-se de um verdadeiro desafio mercadológico. Por que diabos vou-me preocupar com doações para animais selvagens, se aqui do lado há seres humanos morrendo de fome?
Homem sem coração! O anúncio enfrenta corajosamente a pergunta acima. Não ignora que as misérias competem pela solidariedade geral. A quem fazer donativos? Ao mendigo da esquina? Às vítimas do terremoto na Ásia? Aos cegos do vale do Jequitinhonha? Ao bispo Edir Macedo? Ao tatu-bola? Ao tucano abandonado?
Qual desses pedintes é "o meu pedinte"? Esta é a pergunta de Emerson, num ensaio radical sobre a autoconfiança. O autor americano desconfiava muito da compaixão. Sem dúvida, tende a ser uma atitude de fraqueza. Mais um passo e chegamos a Nietzsche, para quem o maior perigo está precisamente na compaixão.
Confesso não entender muito bem o que há de errado em ter pena dos outros. Sem dúvida, o fato de ter pena já dininuiu a dignidade da pessoa de quem temos pena. E aumenta a nossa pretensão.
Mas esse tipo de crítica também é moralista. Julga o ato individual de quem dá esmolas. Avalia. Sincero ou não? Sentimentalóide ou justo? Quem se compadece não seria um egoísta chorão, deleitado nas próprias lágrimas?
Não vejo vantagem em quem se deleita, por sua vez, na crítica ao sentimentalismo alheio. Qualquer avaliação do comportamento individual é igualmente moralista e cada um puxa a responsabilidade e a consciência do próximo para onde bem entender.
O fascinante do anúncio talvez esteja no fato de apelar para uma espécie de superculpa, ou de metaculpa. Se você está preocupado com a sorte dos mendigos urbanos, não é suficiente.
Ocorre apenas porque você topa com eles ao sair de casa, mas um sentido mais intenso de solidariedade, de amor ou de compaixão lhe está sendo exigido: preocupe-se com animaizinhos que você nunca viu na vida. Será um ato mais desinteressado, mais amplo, mais universal e largo.
Em última análise, seremos forçados a ajudar precisamente as vítimas pelas quais não temos maior interesse. Toda atenção ao próximo já é suspeita, uma vez que se trata do próximo. A piedade pelo distante é, assim, mais nobre do ponto de vista ético.
O que levaria a uma conclusão paradoxal: a rigor, só devemos fazer donativo a quem não pede nada; aos infelizes cuja existência nem sequer conhecemos. E isso excluiria a Mãe Ratinha e seus filhotes, agora que sabemos das dificuldades por que passa.
O historiador Carlo Guinzburg, num artigo para a revista americana "Critical Inquiry" (1994), rastreia um problema moral dos mais interessantes. É o tema de "O Mandarim", de Eça de Queiroz.
Suponha que você pode ganhar uma fortuna imensa, desde que conceda em fazer uma coisa simplíssima: apertar um botão. Só que esse botão acarretará a morte -indolor e esperada- de um velhíssimo mandarim na China.
É bem diferente de matar um tio para ficar com a herança. O mandarim está velho, mora na China, não vai doer. A idéia é que a distância, no espaço ou no tempo, diminui nossos escrúpulos morais.
Foi aventada inicialmente por Aristóteles, diz Guinzburg; o exemplo do mandarim não foi originalmente criado por Eça de Queiroz, mas pelo visconde de Chateaubriand, no seu "Gênio do Cristianismo, o dilema moral, ele próprio, parece dissolvido na distância histórica, na vetustez das referências, na multiplicidade dos autores e dos comentários.
Em suma, todo comprometimento moral tem seus limites, no tempo e no espaço. Toda compaixão é finita. Trata-se de um bem escasso. Na verdade, é o Bem Escasso por excelência.
Individualmente, não há muita saída para o problema. Sempre teremos razão de perder o sono por alguma coisa. Mas não deixa de ser importante notar que a disputa por donativos, o recurso à propaganda engenhosa, tal como o explicitado no caso da Mata Atlântica, coloca os próprios atos de desinteresse e caridade sob a lógica da concorrência capitalista.
É que há uma irracionalidade geral no sistema econômico, acima dos comprometimentos morais de quem quer que seja.
Dar empregos a milhares de pessoas pode trazer desequilíbrio ecológico; a luta contra a inflação produz indigentes e desempregados; baratear o preço dos automóveis, para que todos andem mais rápido e com mais conforto, levaria a engarrafamentos gigantescos; a produção em larga escala de sanduíches baratos produz desperdícios de alimento; demarcar terras indígenas pode significar desemprego para os garimpeiros.
Os dilemas são insolúveis, creio, porque tudo se baseia no fato de não haver limites -institucionais, econômicos, culturais- para a demanda de bens. Quando o estilo de vida (e a própria dinâmica das coisas) se fundamenta na insaciabilidade geral, os benefícios particulares são sempre maldistribuídos. É assim que nem os ratinhos da Mata Atlântica vivem em paz, nem nós mesmos.
O porteiro do meu prédio, vendo a foto dos ratinhos, disse: "Acho que isso é um bicho chamado saruê. Na minha terra isso é praga. Come raiz de cacaueiro. Tinha de matar na paulada. Nada contra a Mata Atlântica. Nem contra os saruês, se é que são saruês. O chato é o excesso de prioridades.

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