São Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 1995
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Caixa limpa Orlando Silva de anomalias

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Chega nesta segunda-feira ao mercado a primeira versão exata em CD da voz do cantor carioca Orlando Silva (1915-1978).
A caixa ``O Cantor das Multidões", editada pela BMG Ariola, reúne em três CDs gravações feitas pelo cantor para a gravadora RCA Victor entre 1935 e 1942.
É um alimento perigoso para o culto dos orlandistas, seita que postula como insuperável o timbre de Orlando exatamente nesses sete cabalísticos anos.
A edição contém 66 faixas reprocessadas digitalmente. É acompanhada por um livreto com ensaio biográfico do jornalista Ruy Castro, intitulado ``Caprichos do Destino", e discografia do cantor.
Os fonogramas originais em 78 rotações tiveram eliminadas as anomalias sonoras próprias da primeira fase da era elétrica.
O processo restaura o timbre, os agudos e, portanto, a arte de um dos mais importantes intérpretes da música brasileira. O ouvinte contemporâneo pode apreciar pela primeira vez o domínio de Orlando nas frequências altas e a seda de sua emissão vocal.
Até agora, os CDs de Orlando sofriam do problema da infidelidade. Em discos como os lançados pelo selo Revivendo, a voz ressurgia alterada na essência. As frequências agudas eram abafadas pela equalização.
Perdia-se parte do engenho do cantor, um barítono cantante capaz de polir canções vulgares e convertê-las em fenômenos.
É o caso da valsa ``Lábios que Beijei" (J.Cascata-Leonel Azevedo). Essa amostra do virtuosismo do cantor lançada em março de 1937 exibia um irrefutável espasmo sentimental, pincelado com acabamento de artesão.
Relançada em CD com matriz analógica no início da década, a música parecia cantada por um barítono de timbre cavo, sem brilho, perdido em brumas.
A nova versão restitui a lâmina de origem. Alguns detalhes de arranjo se fazem presentes. Em ``Dá-me tuas Mãos", uma guitarra, que até então se escondia na malha do barulho, volta à tona.
Também retorna na íntegra o acompanhamento de piano do maestro e arranjador Radamés Gnattali em muitas faixas.
A caixa tem tiragem inicial de 10 mil exemplares. Foi idealizada pelo produtor José Milton Albuquerque Pinho, 49. Ele se baseou nas edições de CDs norte-americanas: ``Orlando merecia um tratamento luxuoso, até porque os discos originais se deterioraram."
José Milton conta que a Victor não manteve arquivo de fonogramas. Foi preciso recorrer à coleção do produtor carioca Ayrton Pisco.
``A idéia inicial era lançar tudo de Orlando nesse período, o que daria sete CDs", conta José Milton. ``Isso impossibilitaria comercialmente o projeto."
O restante das faixas será editado em CDs avulsos em data ainda a ser definida. O futuro de Orlando depende do sucesso do projeto.
Os orlandistas se unirão para manter o sucesso póstumo do ídolo. O problema da edição está em sustentar o mito do cantor perfeito.
O arcano supremo dos orlandistas é o seguinte: Orlando teve sete anos de ouro, entre 1935 e 1942, correspondentes ao início da carreira do intérprete. Em 1942. Os xintoístas do orlandismo alegam que o vício da morfina rompeu para sempre a voz do cantor. O ídolo vira espantalho a partir daí. Os orlandistas abominam o Orlando pós-morfina com a mesma intensidade que adoram o pré.
O talentoso ensaio de Castro compra a versão dos orlandistas. Repete a fé nos anos dourados. Diz que Orlando foi ``o maior cantor que a música popular brasileira já havia produzido". Despreza Mario Reis, Elisa Coelho e Sylvio Caldas como cantores ``sem voz".
Mas basta um ouvido médio para constatar o misticismo da afirmação. Orlando, um dos maiores, ao lado de Mário, Sylvio e Elisa, ganha em interpretação depois da morfina. Suas gravações do fim dos anos 40 são um capítulo da derrocada estética de um estilo. E aí reside a grandeza do cantor. Orlando elevou a voz à condição de purgatório.

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