São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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O futuro das relações Brasil-Portugal

CARLOS GUILHERME MOTA

A anunciada visita do presidente Fernando Henrique Cardoso a Portugal impõe uma nova reflexão sobre as relações luso-brasileiras. Levanta uma questão velada na história dos dois países, por assim dizer, irmãos. Temos, brasileiros e portugueses, afinidades culturais e interesses comuns nos quadros da chamada globalização? Será Portugal de fato nossa porta de entrada para a Europa? E que pensar de uma unidade afro-luso-brasileira, como propunha, já em 1945 no Congresso dos Escritores, o notável historiador Jaime Cortesão, exilado no Brasil?
Por conta dos discursos que selaram a irrespirável ``pax atlantica" que Gilberto Freyre ajudou a criar no período do ditador Salazar, encobrindo o servilismo do Brasil na Guerra Fria e o ultracolonialismo bárbaro, a atitude da intelectualidade brasileira responsável sempre foi de desconfiança e até resistência.
Fora, as críticas a esse mundo idílico sempre existiram, do africano Mario de Andrade (Buanga Fele) ao inglês Charles Boxer. Aqui, Antonio Cândido já em 1944 criticava o tal luso-tropicalismo. O embaixador Alvaro Lins (que, em Lisboa, denunciou crimes da Pide), os intelectuais como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Paulo Duarte, Sérgio Milliet, Eduardo Portela e Moacyr Félix nunca se conformaram com essa visão oficial da história luso-brasileira.
Específico do ponto de vista civilizacional e até ``democrático etnicamente", esse ``nosso mundo luso-brasileiro" se distanciou da modernidade e da democracia, imaginando ter um recado ``novo" para a humanidade. Mas, fora do tempo, fomos apenas pitorescos.
Não vamos recordar que nossa independência -uma revolução seguida de uma contra-revolução- foi traumática e violenta, desdobramento da crise do antigo sistema colonial. Mas desde a Inconfidência Mineira, a Conjuração dos Alfaiates e a vigorosa participação brasileira nas Cortes liberais em Lisboa em 1820 -quando Portugal tentou recolonizar o Brasil-, e mais vários levantes de escravos durante todo o século passado, verifica-se que nossa história comum não foi nada tranquila.
Não houve na Independência transição lenta e gradual, prova disso foi a expulsão em 1831 de Pedro 1º, esse personagem à espera de um biógrafo. A Independência abriu um abismo que até hoje não se resolveu. Se avançarmos para a segunda metade do século passado, vamos encontrar uma série de confrontos e desavenças entre Portugal e Brasil. Nem mesmo Eça e Machado de Assis se entendiam bem...
No século 20, Portugal e Brasil não foram também companheiros em grandes causas internacionais. O que explica a interrogação do maior historiador atual em língua portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, a perguntar-se se ainda é possível construir uma memória para Portugal e para os portugueses: ``Essa memória, para mim, tem que situar-se na Europa, no meio de desencontrados valores... Mas será possível ainda construir Portugal na Europa?" (``A Memória da Nação", 1991).
As relações Brasil-Portugal sempre foram ambíguas, daí a retórica reiterativa de desconfiada amizade. De concreto, o saldo é muito baixo. Nenhum entendimento de cooperação científica e cultural mais consistente, embora abundem fundações e centros de estudos.
Mas os atropelos e entraves burocráticos, até para reconhecimento de diplomas profissionais, revelam o subdesenvolvimento dos dois países semiperiféricos, como os conceitua o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, um dos responsáveis pela concessão do título ``honoris causa" a FHC, assim como o foi para Florestan nos 700 anos da Universidade de Coimbra.
Mas não fiquemos nos títulos, comendas, acordos ortográficos. Tem-se, agora, nova oportunidade para se repensar tudo isso, pois o mundo contemporâneo está vivendo profunda revisão.
Impõe-se descobrir outras afinidades, pois a entrada dos portugueses na Comunidade Européia também não é óbvia: Portugal, país semiperiférico, continua com problemas de identidade, e não apenas cultural. Além disso, há o problema da imigração daqueles pauperizados pelo colonialismo português na África, lotando o aeroporto de Lisboa.
A conta do ultracolonialismo está sendo cobrada: a civilização que o português criou bate à porta. E, hoje, como explicar nossa desinformação e silêncio em face da prisão por 20 anos do revolucionário Xanana Gusmão, que defende em Timor Leste a língua e a cultura que também são nossas? Um alerta para nossos diplomatas, ministros de cultura e intelectuais, agentes de uma política cultural que deveria ser avançada.
Em suma, vivemos uma década decisiva da história comum e, como lembrava Jaime Cortesão, atlântica. Nossa diplomacia, que já teve FHC e Celso Lafer à frente, e com interlocutores brasileiros em Portugal do porte dos embaixadores Lampreia e José Aparecido de Oliveira -em luta para criar a Universidade dos Sete-, poderá formular melhor agora a pauta das diferenças.
Vamos revê-las, mas a fundo, estudar nossas diferentes culturas e histórias, envolvendo com vigor o Ministério da Cultura. Pois será a partir das complementaridades que se poderá discutir alguma nova identidade política e cultural. E, talvez, reconciliação efetiva, se possível com menos discursos oficiais e maior intercâmbio, sobretudo de pesquisadores, intelectuais e estudantes críticos, como propõe o Instituto Camões (já que o Brasil não possui órgão semelhante para defesa crítica de nossa língua e produção cultural).
Para além das comemorações que preparam os 500 anos, proponhamo-nos pesquisas em comum, colégios internacionais para receber estudantes selecionados em nossos diversos países, intercâmbio de produtores culturais. Mas para valer. São pontos vitais para uma nova pauta que, uma vez perdido o século 20, nos redirecione ao século 21.

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