São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 1995
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Pesadelo

JOÃO SAYAD

Tenho muitos amigos de esquerda. Há pouco tempo ficamos preocupados com três assuntos: com algumas aulas sobre o Darwin, que assistimos juntos, com o livro Esquerda e Direita, do Norberto Bobbio, e com o presidente Fernando Henrique Cardoso.
O livro de Bobbio faz um grande esforço para definir o que é direita e esquerda. Não tem nada a ver com mercado e Estado, ou privatização e estatização. Conclui que homens de direita são aqueles que acreditam que a natureza humana está destinada a criar uma sociedade de desiguais. Por que somos invejosos, violentos, queremos dominar os outros e assim por diante.
Os homens de esquerda são mais otimistas: que a natureza humana não está definida a priori, não nascemos assim ou assado, mas somos produzidos pelo meio ambiente. Que temos sido assim, invejosos e violentos, por causa do ambiente em que vivemos -de escravos e guerras de dominação na Antiguidade Clássica, de medo e fé durante o período escuro da Idade Média, e de ganância e disciplina nos últimos 300 anos capitalistas. E que, no futuro, existe a possibilidade de um mundo melhor, onde a natureza humana será diferente. E que será possível uma sociedade de iguais.
A verdade, o futuro -a Deus pertence. Mas como homens práticos e amantes do risco, usamos logo os conhecimentos de estatística e de mercado que possuíamos e concluímos -se apostamos na hipótese de direita, podemos ganhar em ordem, disciplina e mais lucros, hoje, mas deixamos de apostar e, portanto, nunca ganharemos o sonho dos homens de esquerda de uma sociedade de iguais, que pode existir. Por nós, apostaríamos na esquerda. É melhor ser pessimista no diagnóstico mas otimista na ação. Perde-se pouco em sonhar.
Depois, falamos sobre Darwin. Que diz o seguinte: sobrevivem no mundo apenas aqueles que se adaptam melhor a ele. Muito bonito, por um lado, e de agrado dos economistas: no mundo concorrencial, sobrevivem as empresas mais eficientes, de preço menor, o que é ótimo para os consumidores. Mas, na aridez do Nordeste, sobrevivem apenas os homens gabirus, baixos, mal-alimentados e deformados. Num setor onde haja sonegação de impostos, como o de confecção de roupas, pelo que dizem, sobreviverão apenas os sonegadores. E na sociedade capitalista em que vivemos sobreviverão apenas os competitivos, os disciplinados, os obsessivos com eficiência, lucro. Bom, por um lado. Mas, ruim por outro: os banqueiros vencerão os empresários -sobrarão poucos Bill Gates da Microsoft e muitos Mike Milken do mercado financeiro. Os hippies da paz e amor serão vencidos pelos yuppies tipo Nick Leesson do Banco Barings de Singapura, de cabelo com gel, terno e gravata. E os homens de esquerda desaparecerão -só sobrarão homens práticos, ambiciosos, que se acreditam melhores que os outros, pessimistas sobre a natureza humana, numa sociedade desigual -de direita.
Darwin vai mais longe: a evolução que se produz no tempo -o macaco se tornando bípede e homem- se reproduz na vida de cada ser biológico, isoladamente. Assim, o feto de um cachorrinho é muito parecido com o feto humano. Quer dizer, como fetos, começamos parecidos com nossos ancestrais mamíferos e, depois, reproduzimos o processo de evolução da raça e nos tornamos os seres biológicos que somos hoje -com cérebro mais pesado, cheios de teorias, bípedes e aptos a sobreviver no trânsito das grandes cidades, no desemprego, na violência do crime urbano, com inflação alta etc. Este pedacinho da teoria do Darwin explica a evolução e o currículo de muitos políticos -o governador Carlos Lacerda que começou no Partido Comunista e acabou com o mais temível orador da direita. O que nos permitiria concluir que esta história, de que os homens jovens são de esquerda e envelhecem para a direita, nada mais seria que uma adaptação causada por este meio ambiente de fome, guerras e violência que transforma o homem de esquerda num homem que abomina o risco, detesta sonhar, é prático e ambicioso. Será que é por isto que o presidente passou a considerar a esquerda burra? Que pesadelo!

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