São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 1995
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Doação involuntária _esse não é o caminho

CELSO RIBEIRO BASTOS

O avanço da ciência no campo da medicina tornou possível muito do que no passado era tido por absolutamente inalcançável. É o caso, por exemplo, do transplante de órgãos.
Torna-se óbvio que nessa área existam interesses de duas partes: de um lado, está o beneficiado pela doação, que dela necessita como condição de sobrevivência. Não se pode negar aí a utilidade do recebimento de um órgão. Do outro, o interesse do doador, que deve ter o direito à disposição de seu corpo respeitado.
Essa é uma manifestação do direito à vida, assegurado constitucionalmente. O corpo é a sede transitória da alma humana. Enquanto matéria, ao indivíduo pertence e a ele cabe dar a sua destinação. Não podemos esquecer as influências religiosas que recaem sobre esse tema, de resto tão delicado.
É por isso que vemos com muita preocupação a aprovação pela Câmara Municipal de São Paulo de um projeto de lei que obriga todo o cidadão paulistano a doar seus órgãos depois da sua morte. Para que isso não ocorra, será necessário o registro junto ao Cadastro Municipal de Não-Doadores de tecidos, órgãos ou partes do corpo (Camund).
Vê-se, assim, que a doação é praticamente obrigatória. No caso da morte de uma pessoa que naquele momento não apresente documento de comprovação de inscrição, será autorizada automaticamente a extração de órgãos, mesmo que contra a vontade dos familiares.
O projeto do vereador Faria Lima torna de domínio público o corpo humano. Basta flagrar situações em que, por qualquer motivo, como não morar na cidade de São Paulo, o indivíduo não teve os cuidados de se acautelar para defesa do seu corpo após a morte.
Bastará a mínima omissão para que seus órgãos sejam transformados em coisa pública, aos quais se abaterão os abutres de peças, retirando tudo que possa ser aproveitado. Um projeto dessa natureza fere princípios religiosos e morais sérios. Traduzido na cultura brasileira, não é concebível a substituição da disposição voluntária de órgãos por uma imposição estatal.
Esse projeto de lei é mais estapafúrdio quando investe inclusive contra matéria já disciplinada pela lei nº 8.489, que no seu artigo 3º diz: ``A permissão para o aproveitamento (...) efetivar-se-á mediante a satisfação das seguintes condições: 1) por desejo expresso do disponente, manifestado em vida, através de documento pessoal ou oficial; 2) na ausência do documento referido no inciso 1 deste artigo, a retirada de órgãos será procedida se não houver manifestação em contrário por parte do cônjuge, ascendente ou descendente".
Nota-se que a lei em vigor resguarda inteiramente as cautelas com o corpo do disponente. Faz com que qualquer doação seja fruto de um ato de caridade proferido pelo doador em potencial ou, depois da morte, pelos familiares.
No entanto, a criteriosa orientação da necessidade de uma autorização do doador ou da família para o transplante de qualquer órgão, expressa na lei nº 8.489, vê-se ameaçada. O senador Darcy Ribeiro apresentou um projeto de âmbito federal, que tramita atualmente pelo Congresso Nacional no mesmo sentido daquele de São Paulo, para disciplinar a doação de órgãos.
Cabe à União, que desfruta da competência na área do direito civil, legislar sobre o assunto. Por isso, no caso do projeto de lei do vereador paulista, verifica-se uma esdrúxula intromissão em assuntos alheios à municipalidade.
No mérito, a proposta agride frontalmente os princípios mínimos de religiosidade do cidadão brasileiro e o direito à escolha da destinação de seu próprio corpo. Seria melhor que não se apresentassem leis desse tipo, que só visam tumultuar a opinião pública, não trazendo soluções condizentes com o interesse coletivo.

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