São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 1995
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Biografia de um homem feliz

JANIO DE FREITAS
DO CONSELHO EDITORIAL

Em certos trechos do circuito, a Ferrari de Portago se aproximava ameaçadoramente do líder. Mas, ao abordar os trechos mais sinuosos, ficava sempre para trás. De repente, Portago notou que o líder levantava a mão e não entendeu por quê. Mais adiante, outra vez o mesmo gesto. Portago percebeu: com os dedos, Fangio indicava ao companheiro de equipe a marcha certa e o lugar exato de trocá-la para obter o melhor rendimento do motor no circuito sueco.
Tal cena é impensável na Fórmula 1 atual. Nela, não cabe mais a idéia de esporte. Idéia e prática que, no entanto, não impediram Juan Manuel Fangio de conquistar as maiores glórias e a riqueza com o automobilismo -recompensa justa para quem se tornou cinco vezes campeão mundial em sete campeonatos disputados, neles deixando recordes jamais igualados e quase inacreditáveis.
Fangio entrou no primeiro Campeonato Mundial, em 50, já com 38 anos. Mas estava envolvido com carros desde menino. Nascido em 1911 de uma família da classe média baixa, na cidade argentina de Balcarce, filho de um mestre-de-obras, aos 11 anos começou como auxiliar em uma oficina mecânica. Antes dos 15 já montara seu primeiro carro com peças relegadas.
``Mas a primeira prova eu só disputei aos 23 anos", contava Fangio. ``Mal a corrida começou, fiquei no meio da estrada: meu carro se desmanchou, com uma barulhada infernal. Construí outro. Conduzi-o como um louco e sempre perdi. Jamais ganhei com um dos construídos por mim. Aliás, custei a vencer uma prova, gastei seis anos para uma vitória."
Esta vitória foi o Grande Prêmio Internacional do Norte, o percurso, no gênero rali, Buenos Aires-Lima-Buenos Aires, com grande parte dos seus intermináveis 9.500 km dedicados à dupla transposição da Cordilheira dos Andes. Nos anos seguintes, ganhou com o mesmo carro, um Chevrolet adaptado, todas as corridas de distância disputadas na Argentina. Irrompida a guerra, as corridas foram suspensas, mas Fangio não deixou de treinar. Quando, em 47, afinal as corridas foram reiniciadas na Argentina, Fangio, aos 36 anos, foi considerado com idade demais para a velocidade.
Apesar disso, inscreveu-se e se classificou para o Grande Prêmio de Buenos Aires, com que o ditador Perón dava início ao seu projeto de tornar a Argentina um centro mundial de corridas. Com um carro montado sob sua orientação, Fangio surpreendeu os novos monopostos levados pelos ases do automobilismo europeu: perdeu a prova já no final, porque seu carro não aguentava mais. Deste desempenho ficaram dois saldos: a decisão de Fangio, enamorado pelos modernos monopostos, de não deixar as corridas e a disposição do ditador de incentivá-las e apoiar os pilotos argentinos.
Entusiasmado, Fangio retomou seu Chevrolet de rali e entrou na prova Buenos Aires-Caracas. ``Foi aí que aprendi para sempre o quanto é ruim o entusiasmo. Corríamos nos Andes, já na altura de Lima, e passava da meia-noite. Ao entrarmos numa curva, o carro rodopiou e desceu montanha abaixo. O carro se arrebentava em choques violentíssimos, até que ficou inerte, dando estalos. Então me virei para meu amigo (e co-piloto): estava morto. Ali mesmo revi minha decisão e decidi abandonar as corridas."
Decisão que só durou até que o Automóvel Clube da Argentina lhe pôs sob os olhos uma Maserati nova para disputar outro Grande Prêmio de Buenos Aires. Quando, pouco depois, Perón mandou à Europa um grupo de pilotos argentinos, Fangio deu a largada para sua carreira de glórias mundiais: em dez corridas, venceu seis. Eram as vésperas da criação do Campeonato Mundial de Pilotos, em 50, e, com sua exibição, Fangio não precisava mais do apoio oficial. Passara a ser procurado pelas fábricas e, com elas e com os prêmios, começou a vir também o dinheiro.
Nos primeiros anos, eram poucas as provas válidas para o Campeonato Mundial, mas numerosos os Grandes Prêmios nacionais -tanto os de F-1, os preferidos de Fangio, como os de protótipos, hoje chamados ``de marcas". A documentação das provas extracampeonato, porém, é falha, até mesmo nos registros do próprio Fangio.
Seguro é que, no total, ele chegou a 150 provas e venceu 82 delas. Precisos são os registros da Fisa e da FIA, relativos já aos Campeonatos Mundiais. E deles se extrai a colossal folha corrida que consagra Fangio como o maior piloto de todos os tempos:
- em 94% das corridas disputadas, estava na primeira linha de largada (alguns grandes prêmios tinham mais de dois carros na largada);
- em 55% conquistou a pole-position;
- em 45% fez a volta mais rápida;
- venceu 47% das corridas.
- vice-campeão em 50, campeão em 51, não disputou em 52, vice-campeão em 53, campeão em 54, 55, 56, 57 (em 58, ano em que parou, correu apenas duas provas). Ao conquistar o quinto título, Fangio estava com 46 anos.
Com tudo isso, jamais houve um piloto de corridas que se parecesse menos com um piloto de corridas do que Fangio. Atarracado e massudo (naquele tempo, 85 kg em 1m73), de gestos e passos muito calmos, os pés meio voltados para dentro. E, mais espantoso ainda, sem o mínimo toque de arrogância. A voz, mais fina e macia do que o corpo fazia esperar, era de adequação perfeita à cordialidade e à serenidade de Fangio. Nas pistas não deixou registro de um só ato descortês, de um só momento que pusesse em risco outro competidor.
Pode-se ter certeza de que foi um campeão feliz -o que é mais raro do que parece. E ele tinha certeza de que era um homem feliz -o que não é menos raro.

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