São Paulo, quinta-feira, 20 de julho de 1995
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À luz do dia

OTAVIO FRIAS FILHO

A edição de um artigo do historiador americano Robert Darnton, no caderno Mais! de domingo retrasado, continua gerando protestos. Não por causa do artigo, pelo visto muito pouco lido, em que o autor situava a literatura libertina do século 18 como expressão das idéias do iluminismo. O problema eram as ilustrações.
O mais estranho é que as gravuras, embora de feição pornográfica, eram ``eruditas", extraídas de obras dos séculos 17 e 18. Tão chocante quanto as imagens era o contraste entre a inspiração alegórica, a atmosfera rococó, o aspecto em geral museográfico e a atualidade das cenas indecorosas.
Como disse Oscar Wilde, ``a pornografia é o sexo dos outros". O sexo é sempre o mesmo, em qualquer tempo e lugar, de modo que aquelas gravuras, ressuscitadas do pó, vibraram de obscenidade outra vez, na reação horrorizada de alguns leitores. Os artistas que as desenharam ficariam orgulhosos.
É enigmático o porquê de o sexo atrair, mesmo na nossa época permissiva, tamanha repressão. Além do crime e da ciência econômica, é talvez a única atividade regularmente submetida a segredo. A explicação dos antropólogos, de que o intercâmbio que funda a sociedade depende de vetos sexuais, em especial o incesto, não parece suficiente.
Freud achava que das necessidades básicas o sexo, sendo a mais adiável, é a mais plástica, e por isso mais sujeita do que os outros impulsos aos compromissos e fabulações do psiquismo. Essa seria a razão pela qual o sexo chama a si, por assim dizer, e a rigor materializa, todos os conflitos da personalidade.
Vivemos num tempo tão ``esclarecido" e racional que quase ninguém mais repele o que é obsceno em nome de Deus, dos bons costumes ou do pudor das mulheres. Mas a psicanálise veio, nesse particular, em socorro dos adversários da tolerância sexual, para lhes reforçar o melhor argumento, que é preservar as crianças.
Preservar não mais a suposta ingenuidade de antigamente, mas o desenvolvimento das fases da libido, o sinistro trem-fantasma que para Freud a criança tem de percorrer, entre desfiladeiros de perversão, até atingir os píncaros da sexualidade plena, normal. Qualquer indução, qualquer estímulo fora de hora poderia causar descarrilhamento.
Por mais defensável que essa visão pedagógica seja, ela está em contradição latente com um dos pilares da pedagogia, que remonta ao próprio Rousseau, seu fundador: o de que a relação pedagógica repousa sobre a franqueza e a verdade. Até aqui, a conciliação tem sido fácil; o educador não mente, omite.
As variáveis que incidem sobre a infância são de tal forma incontroláveis, porém, que toda pedagogia é em grande parte pretensão vã dos adultos e perda de tempo das crianças; serve mais para apaziguá-los do que para ajudá-las. Só que agora a necessidade de prevenção contra a Aids está levando o sexo para a vida consciente das crianças.
Pessoalmente, respeito as suscetibilidades atingidas pelas gravuras do Mais! e concordo que a publicação é pelo menos discutível. Mas desconfio de que estejamos agindo como avestruzes, ao anunciar preservativos à luz do dia enquanto pretendemos que as crianças continuem na escuridão.

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