São Paulo, sexta-feira, 21 de julho de 1995
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Por que conservadorismo?

A construção de uma ``res publica" no Brasil tem de se articular com a reforma da sociedade
MARCO AURÉLIO GARCIA
A entrevista de Francisco Weffort à Folha (10/7/95) repercutiu mais por sua nova percepção sociológica da ``sensibilidade social" de Antônio Carlos Magalhães do que pelas idéias que expõe. É injusto.
Deixando de lado a surpresa e até mesmo a indignação que a descoberta do ministro possa ter provocado, há que reconhecer, no entanto, a coerência entre essa pequena genuflexão diante de ACM e o conjunto de teses por ele defendidas. Weffort não esconde uma certa perplexidade intelectual. Indagado se o governo FHC é neoliberal, ele nega, perguntando-se, porém: ``Mas se não é isso, o que é?".
A orientação predominantemente neoliberal da política econômica do governo que Weffort integra (mais próxima da mexicana e da argentina do que ele suspeita) obviamente não esgota sua caracterização.
Este neoliberalismo tardio (pelas resistências sociais que enfrentou) é fruto da convergência de duas vertentes políticas: a das elites tradicionais que historicamente sugaram o Estado e a de novas elites empresariais e intelectuais que, diante da crise do nacional-desenvolvimentismo, não viam alternativas fora da integração, ainda que subordinada, em um mundo globalizado.
Abandonaram a perspectiva de construção de um projeto nacional que permitisse uma inserção soberana e competitiva.
O que uniu todas essas forças, na mais abrangente aliança política de que se tem notícia no Brasil, foi, além do desejo de permanecer no e ascender ao poder, o temor da ruptura que poderia representar a eleição de Lula em 1994.
A situação não é propriamente nova. Cada vez que o país se vê diante da necessidade de mudanças, produz-se um compromisso histórico conservador que obriga os grupos dominantes (e parte de elites emergentes) a pôr entre parênteses suas divergências em nome de valores mais altos: a preservação do poder.
A consequência desses acordos, dos quais resultaram a Independência, a Abolição e a República, foi sempre deixar intocada a essência do sistema de dominação. No século 20, por duas vezes (1938 e 1964) esse compromisso histórico desembocou em significativos processos de modernização conservadora do país. Em ambos os casos a expansão colossal das forças produtivas se fez à custa de uma espantosa exclusão social. Nos dois exemplos, a democracia política compreensivelmente não floresceu, para dizer o mínimo.
Fernando Henrique afirmou, e Weffort gosta de repetir, que o Brasil não é um país subdesenvolvido, mas injusto. O que está por detrás dessa tese (independentemente do fato de ``subdesenvolvimento" ser um conceito teoricamente discutível) é uma tentativa de desvincular o modelo de acumulação seguido nesses últimos 60 anos de seus efeitos sociais e políticos.
Com isso FHC nos anuncia seu projeto, que reitera a utopia neoliberal: a busca da estabilidade monetária como valor supremo, com todas as implicações de desconstrução nacional e social que isso implica, na expectativa de que em algum momento virá a justiça social.
Enquanto isso não ocorrer -e a experiência atual mostra que é muito difícil que ocorra- tratam-se as ``mazelas" sociais atuais por meio de políticas compensatórias. Isso explica a surpreendente menção de Weffort ao programa Comunidade Solidária, cuja credibilidade hoje no país se assemelha à do Papai Noel.
O pensamento de Weffort sofreu mutações significativas e aceleradas. Em setembro de 94, ele com mais 12 intelectuais dava uma das 13 razões para votar em Lula: a convicção de que a vitória do candidato do PT representaria uma ``segunda revolução democrática" no Brasil. O mesmo título Weffort utilizaria em um artigo hagiográfico, publicado pela Folha, celebrando a vitória de FHC, quando as urnas ainda não haviam sido abertas.
Hoje ele detecta no PT uma inaptidão para o poder. O pecado original de sua origem social fez do partido um ``outsider", sem visão de Estado. Sem explicitar, Weffort se soma ao argumento central do conservadorismo que trata de confundir qualquer demanda da sociedade com ``corporativismo".
Com isso, elimina-se o aspecto mais moderno do PT -sua origem nos movimentos- e a capacidade que teve, com muitos erros, por certo, de plasmar, em um tempo relativamente curto, essas demandas sociais em alternativas políticas globais inovadoras, como o demonstram grande parte de suas experiências de governo e o próprio Programa Lula-94, com o qual Weffort colaborou.
O Brasil precisa de uma reforma do Estado. É pouco provável que ela se faça com os que historicamente dele se apropriaram para seus fins particulares. A construção de uma ``res publica" no Brasil efetiva tem de se articular com uma reforma da sociedade, e, para que esse processo ocorra, será necessária uma ``sensibilidade social" bem distinta daquela que Weffort vê em ACM.
A articulação desses dois movimentos reformadores é o grande desafio que se coloca hoje para as esquerdas brasileiras que não sucumbiram ao compromisso histórico conservador. Em tempos de abertura, em que os produtos importados ganham especial aceitação, é bom lembrar, com Bobbio, que a divisão esquerda/direita continua a existir.
Quem quiser seguir o difícil caminho de (re)construção de uma política de esquerda sabe quais são os desafios. Para os outros a estrada é mais fácil. Mas como diz meu guru, José Simão, vão indo que eu não vou...

MARCO AURÉLIO GARCIA, 54, é professor do Departamento de História da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), secretário de Relações Internacionais e membro da Comissão Executiva Nacional do PT.

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