São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A oratória da tapeação

JANIO DE FREITAS

``É preciso dar um basta a isso." Quando é preciso dar um basta a alguma coisa, a responsabilidade pelo basta é de quem representa a autoridade. Se o que deve cessar é uma situação anti-social ou ilegal, a responsabilidade final e maior pela intervenção recai no presidente da República. Aquela frase inicial é do presidente da República, dita em Lisboa. ``Isso" que precisa ter um basta é o aumento dos aluguéis, já no mês passado em 226% só durante a vigência do bondoso Real, e o custo sempre mais extorsivo das mensalidades escolares. Logo, o detentor da responsabilidade vai assumi-la e dar o basta que considera necessário. Não, não vai.
``É preciso dar um basta", mas ``o governo não pode intervir". Então quem pode, se o presidente da República é, pela legislação brasileira, a única autoridade que pode intervir neste caso? ``O mercado é que tem de agir." Mas é porque o mercado está agindo, exatamente por isso, que acontecem os aumentos estranguladores. Poderia agir na direção inversa ou, pelo menos, estar estabilizado. Cabe ver, então, por que isso não se deu.
Quando se tornaram obrigatórias as conversões de valores pela URV, preparando a introdução do real, os aluguéis foram deixados sob a ameaça da lei do inquilinato, que na verdade é a lei dos proprietários, e as mensalidades escolares foram despachadas para uma medida provisória própria, que demorou três meses e cujo resultado proposital, na prática, foi dar campo aos aumentos. Agora, na suposta desindexação, não só os salários tornaram-se desprotegidos de correções pelos índices de inflação: os aluguéis e as mensalidades escolares foram os dois outros valores chutados para a hipotética negociação.
Já desde a URV, portanto, o ``governo que não pode intervir" interveio contra inquilinos e pagadores de escolas. E não por descuido, inabilidade ou acaso. Como todos sabem, a premissa fundamental do combate à inflação, à maneira atual, é dificultar crescentemente o consumo, seja do que for. E aumentos de aluguéis e mensalidades escolares foram vistos pelo governo real como duplamente favoráveis ao Plano Real: são dois itens de gastos que tomam grande parte dos salários, reduzindo substancialmente o dinheiro para o consumo em geral, e são muito desconsiderados nos índices de inflação. Tanto que suas subidas astronômicas não impediram que os índices mensais se mantivessem baixos.
Tão gaiatos e falsificantes são os índices oficiais e oficiosos de inflação, que, embora a grande maioria pague aluguel e só a ínfima minoria compre mamão, em vários deles o preço do mamão influi mais do que os aluguéis e as mensalidades escolares. Isto já aconteceu na inflação do Real, mas ninguém no governo ousou reprisar Mário Henrique Simonsen, que um dia, ministro da Fazenda, se expôs à verdade ridícula de responsabilizar o chuchu pelo índice mais alto de inflação em dado mês.
Se maiores aluguéis e mensalidades diminuem o salário e não pesam no tapeador índice de inflação, está explicado por que ``o governo não pode intervir" para racionalizá-los, como intervém contra os salários: o governo quis aqueles aumentos e quer que continuem. Diante deles e de sua responsabilidade, o presidente da República, como certa figura histórica, lava as mãos. Enquanto o custo de vida verdadeiro da classe média lhe vai devorando, como a nenhum outro segmento social, os proclamados benefícios da queda da inflação.
``É preciso dar um basta", sim, na oratória da tapeação.

Texto Anterior: Elite faz concurso em Campos do Jordão
Próximo Texto: Marchezan foi a todas as sessões da Câmara
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.