São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Bósnios jogam xadrez sob ataque sérvio

JEAN HATZFELD
DO ``LIBÉRATION", EM SARAJEVO

O prédio do clube Bosna, com seus quatro andares em uma ruela em subida, é uma das poucas construções de Sarajevo (capital da Bósnia) ainda intactas depois de três anos de bombardeio.
Tal deferência é ainda mais curiosa porque ele se encontra no coração da cidade, ao lado do Ministério do Interior, de uma delegacia de polícia e da Presidência.
Logo na entrada, o clube Bosna parece um clube de futebol. Em baixo, um bar acolhe jogadores, treinadores e torcedores que, enquanto bebem cerveja ou café, se recordam das partidas do passado.
Nas paredes do corredor estão escritas, em letras imensas, datas inesquecíveis. No primeiro andar, está a sala com troféus e taças.
O clube Bosna é um clube de xadrez e ganhou o título de campeão da Europa em plena guerra.
``Desde 12 de julho 1992, quando o prédio foi reaberto, não ficamos um único final de semana sem comparecer", explica Mirza Miralem, diretor técnico do clube.
E afirma: ``Nos piores bombardeios, na pior penúria, quando a cerveja gelava nos copos por falta de eletricidade, jamais este torneio semanal foi adiado ou encurtado. Pelo contrário, quanto mais violentos os dias, mais as pessoas comparecem aqui para jogar e, assim, fugir de suas casas".
Miralem, que teve sua empresa destruída e mora num bairro sérvio, passa os dias no clube.
Dois clubes disputam a supremacia do xadrez em Sarajevo desde antes da guerra.
O Sarajevo, fundado em 1902, sob o reinado austríaco, e sustentado pelo regime comunista, reivindica a paternidade da tradição de xadrez na cidade.
O Bosna também apresenta a relação de seus êxitos: sete vezes campeão da então Iugoslávia nos anos 80, quase o mesmo número do seu rival em um século.
É o clube da modernidade. Sob a proteção de Milirad Gacina, o clube abriu suas portas tardiamente, no início dos anos 60, em uma cidade que tinha uma quinzena de clubes, financiados pelo Estado e administrados por uma federação.
Mais de 4 milhões de pessoas jogavam. Graças aos investimentos das primeiras empresas particulares, o Bosna sai do círculo influente do Partido Comunista. Inventa a privatização e cria sua própria empresa de marketing.
O clube atrai Bojan Kurajica, campeão de juniores do mundo, e cerca de 20 grandes mestres entre os mais famosos do país.
Antes da guerra, uma centena de jogadores vivia do xadrez em Sarajevo. Participavam, ao longo do ano, de torneios na Europa.
Isso explica por que, quando sérvios sitiaram a capital bósnia em abril de 1992, os 20 jogadores do Bosna estavam no exterior.
Três jogadores de origem croata se instalaram em Zagreb (capital da Croácia), dois voltaram a Sarajevo, e o restante se dispersou nas capitais européias.
Em 93, por iniciativa de Zladko Klaric, mestre bósnio com indústrias na Áustria, o campeão mundial Gari Kasparov se filiou ao Bosna e passou a representá-lo.
``O entendimento foi imediato", diz Dragan Glavas, secretário da federação dos enxadristas.
``O campeão do mundo, originário de Baku (capital do Azerbaijão), sabe o que significa uma limpeza étnica. Seu engajamento representa uma maneira de atuar."
Um ano depois, liderado por Kasparov e dois outros grandes mestres da ex-União Soviética, Zurab Azmaiparasvili e Sembat Liputjan, o Bosna conquistou em Lyon o título de campeão europeu.
``Como não tínhamos televisão nem telefone, acompanhávamos os resultados graças ao fax do jornal `Oslobodenje'. Mas esperamos semanas para conhecer o desenrolar das partidas", relembra Emir Kemura, professor do clube.
Com a guerra, a comunidade de jogadores de xadrez se dispersou de um dia para outro. Jogadores foram para o front, morreram, se feriram, se exilaram ou fugiram.
Mas, após três meses, durante um dos períodos mais sangrentos do cerco, os dirigentes do Bosna reabriram as portas do clube.
``Era uma época tão agitada que as pessoas não se encontravam", explica Miralem. Pouco a pouco os jogadores retornaram e novos chegaram, em maior número.
``Com a guerra, o xadrez se tornou cada vez mais popular. Tornou-se o único esporte praticável sob bombardeios", diz Miralem.
Outros clubes retomaram atividades e novos clubes foram criados. Nasceram o Butmir, na cidade de nome igual, o Dobrinja, numa aldeia devastada, o Naprdeak croata e o Preporod muçulmano.
Emir Kemura, economista, está desempregado desde o início da guerra, como todos os seus colegas. É juiz internacional de partidas, mas não consegue viajar.
Ele aproveitou a oportunidade do xadrez para trabalhar com crianças. ``No início, foi difícil obter dos pais a permissão para as crianças saírem sob as bombas, mas, pouco a pouco, eles entenderam que elas estavam mais seguras no clube do que em casa", disse.
Cerca de 300 crianças estudam xadrez três vezes por semana, nas quatro escolas dispersas na região.
Sem contar crianças que jogam com a família. Proibidas de praticar esportes, jogam xadrez com entusiasmo surpreendente.
Enquanto na escola os professores vêem uma queda na atenção, perseverança e memória, os professores de xadrez observam uma vontade inacreditável de jogar.
Para técnicos, o nível das partidas caiu com a guerra. A elite foi embora. Quem ficou mostra menos assiduidade, menos concentração e tem menos informações.
``É impossível encontrar nas livrarias um único livro de xadrez. Tínhamos um jornal, mas depois do terceiro número, desistimos por falta de papel", diz Miralem.
Segundo ele, as próprias regras mudaram. Por causa dos bombardeios, a federação foi obrigada a encurtar o tempo do jogo. A técnica também teve de mudar.
``Em tempo de paz, evoca-se o perigo de loucura do xadrez. Em tempo de guerra, muitos jogadores dizem que, sem ele, enlouqueceriam", completa Miralem.

Tradução Lise Aron

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