São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 1995
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Aos 80, Bellow revê `insanidades' do século

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

O escritor Saul Bellow nasceu um ano depois do início da guerra que fundou o século -a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como percebe quem lê ``Tudo Faz Sentido", sua coletânea de ensaios que a editora Rocco manda às livrarias brasileiras hoje, ele é, de fato, a cara do século 20.
Aos 80, que completou em 10 de junho, Bellow não se sente muito bem. Passou seis meses no hospital com uma infecção gravíssima, possivelmente por conta de um peixe que comeu. Mesmo esse seu mal-estar recente parece refletir o deste fim de século.
Afinal, ele é um grande escritor porque tem um extremo senso de crise -e crises, como se sabe, são recorrentes nos últimos 80 anos.
Até os velhinhos politiqueiros que outorgam o Prêmio Nobel de Literatura sabem: quando Bellow ganhou o seu, em 1976, destacaram como motivo sua ``análise sutil da cultura contemporânea".
Mas não chame de ``apocalíptico" o autor de ``O Planeta do Sr. Sammler", ``Agarre o Dia" e ``Herzog", embora ele, judeu, tenha quê por apocalipses. Bellow ainda gosta da vida.
``Em geral achamos que os escritores não `vivem', só ficam fechados em gabinetes, mas Bellow teve uma vida riquíssima, fora de série", disse à Folha por telefone, de Nova York (EUA), o jornalista James Atlas, que há seis anos trabalha na biografia de Bellow.
``Tudo Faz Sentido" (It All Adds Up) comprova a afirmação de Atlas. O livro não poupa memórias dos prazeres que obteve em viagens, leituras e convívios.
A tradução do título é ruim. O sentido do original significa algo como ``tudo está relacionado". A versão brasileira dele é antibellow, pois o que sua literatura mostra é justamente a constante dificuldade de extrair sentidos das coisas.
Mas não alegrias e analogias. No ensaio ``Inverno na Toscana", por exemplo, Bellow narra suas experiências gastronômicas naquela maravilhosa região italiana.
Depois de provar trufas, cogumelos subterrâneos muito usados nos pratos locais, diz: ``Tentamos dar um nome ao cheiro de almíscar que impregna o carro. É digestivo, é sexual, é um odor de mortalidade". Esse é apenas um aperitivo.
O prato principal do livro, que reúne 31 ensaios de 1948 a 1994, são lembranças de escritores e intelectuais e sua relação com a política, além das considerações sobre a instabilidade e amoralidade da vida urbana moderna.
Bellow nasceu no Canadá, numa cidade chamada Lachine, mas se mudou para Chicago (EUA) aos nove anos, onde mora desde então. Chicago e Nova York são as metrópoles em que suas histórias de casamentos frustrados e materialismo alucinante transitam.
Por falar em tempestades conjugais, Bellow está no quinto casamento. Juntou trapos em 1990 com uma aluna sua da Chicago University, Janice Friedman, quando ela tinha 31 anos.
Aparentemente ele poderia dizer, com a atriz Liz Taylor, casada nove vezes, que se casamento não fosse bom não o repetiria tanto.
É a suspeita de Atlas. ``Ele teve períodos muito felizes de vida a dois", diz. Mas quem leu ``O Legado de Humboldt" (1975), um de seus melhores romances, tende a discordar; é inesquecível o sabor amargo da cena em que Renata dá um fora no narrador, largando-o à beira do precipício.
Que dizer de ``Herzog" (1964), então? Nesse livro corrosivo, Moses Herzog entra em parafuso depois de abandonado pela mulher e passa a escrever cartas para um monte de gente, vociferando contra o mundo e a humanidade.
Quando lançado, ``Herzog" teve tal impacto que Bellow, como contou em entrevista ao ``The New York Times" em 1982, recebeu cartas de mais de 3.000 leitores, todas no tom: ``Essa é minha vida, isso aconteceu comigo".
Todo o medo e a ansiedade que as mulheres provocam nos homens foram traduzidos por Bellow como por raros outros escritores.
O outro tema de Bellow -o dinheiro nas cidades e seus subprodutos, a corrupção e o cinismo-, que marca livros como ``Agarre o Dia" (1951) e sua obra-prima ``O Planeta do Sr. Sammler" (1969), não vem tanto de experiência pessoal, mas do que observou no dia-a-dia de Chicago e Nova York.
``Tudo Faz Sentido" ecoa o tema em várias passagens. Em ``Chicago: a Cidade que Era, a Cidade que É", Bellow escreve:
``Chicago constrói e demole a si mesma vezes seguidas, varre o entulho e recomeça. Chicago não restaura; faz algo inteiramente diferente. Quem conta com a estabilidade aqui vai ficar doido."
Soa familiar? Mais novidade você vai encontrar nos relatos que Bellow faz da intelectualidade nova-iorquina, na qual é tão reverenciado, mas com a qual tão poucas afinidades têm, mesmo com outros escritores americanos judeus (Bernard Malamud, Philip Roth, William Styron, Norman Mailer).
Em entrevista à revista ``Bostonia" em 1991, publicada no livro, Bellow se auto-ironiza como ``um judeu do meio-oeste metido a intelectual". Pois foi assim que ele sempre se sentiu, segundo Atlas.
``Bellow só fala o que pensa. Ele tem uma mente independente, que não combina com a badalação que os EUA gostam de fazer com seus escritores", diz Atlas.
Normalmente chamado de ``conservador", Bellow é autor do prefácio a ``O Declínio da Cultura Ocidental" (editora Best Seller), de Allan Bloom (a quem dedica um ensaio autodefensivo no livro) e da frase ``Onde está o Proust de Nova Guiné?" -duas marcas indeléveis de sua posição cultural.
Below repudia a moda universitária americana de rejeitar as grandes obras da civilização européia -como ``Em Busca do Tempo Perdido", do francês Marcel Proust- e diz que essa rejeição, assunto de Bloom, trai ``as volumosas insanidades do século 20".
``Ele é, sem dúvida, um conservador político e cultural", diz Atlas, ``mas jamais poderia ser descrito como homem de direita."
O que o irrita particularmente já o irritava nos anos 30 e 40, quando foi da ``Partisan Review", uma revista cultural de teor ideológico, em que intelectuais como Arthur Koestler, Lionel Trilling, Clement Greenberg, Jean-Paul Sartre e André Malraux pontificavam sobre a necessidade de o artista se manifestar politicamente.
Todos esses escritores, que o escritor conheceu, são descritos em ``Tudo Faz Sentido", assim como Hannah Arendt, Edmund Wilson (``Ele se parecia com o Mr. Magoo", diz), Harold Rosenberg, John Berryman e Trotski (cujo cadáver viu, no México).
Bellow conta que, certa vez, andava de mãos dadas com a filha e encontrou em Paris o húngaro Koestler (1905-1983). Koestler não gostou de sua aparência de turista frívolo e repreendeu Bellow, como se escritor sério não pudesse passear com a família.
Essa é uma das ``insanidades" do século referidas por ele. Saul Bellow é um sobrevivente.

Livro: Tudo Faz Sentido
Autor: Saul Bellow
Tradução: Rubens Figueiredo
Páginas: 378
Preço: R$ 36,50

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