São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 1995
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Reformas pró-funcionalismo

MAILSON DA NÓBREGA

O governo anunciou a futura remessa ao Congresso de reformas constitucionais na área da administração pública. Devem abranger temas politicamente sensíveis: estabilidade, isonomia e regime jurídico único. Incluiriam também o delicado assunto da autonomia do Legislativo e do Judiciário para disporem sobre os seus salários.
A idéia é modernizar o aparelho do Estado e remover os equívocos da Constituição, cujos efeitos negativos mais conhecidos estão no lado fiscal, nos monopólios e no limite de 12% ao ano para os juros reais. Poucos se dão conta de que a Carta de 1988 representou também um sério atraso para a administração de pessoal.
O mergulho no passado nos remeteu à década de 30 com a reintrodução do regime único. Perdeu-se todo um esforço de flexibilização. Meteram-se num mesmo saco a administração direta, as autarquias e as fundações. A norma aplicável a um pesquisador é a mesma do motorista.
No Estado democrático, deve-se tratar isonomicamente os iguais. Ao tornar-se preceito constitucional, entretanto, a isonomia gerou distorções. Confunde-se semelhança com isonomia. Propõe-se a equiparação mesmo quando há evidente diferença de atribuições e responsabilidades.
Na Grã-Bretanha, o salário do secretário-executivo do Ministério da Fazenda é superior ao de colegas de outras pastas. Apesar da mesma denominação, são cargos distintos. Aqui, essa situação daria processo na Justiça. É comum militar querendo equiparação com juiz, fiscal da Sunab a fiscal da receita federal, e bancário do Banco do Brasil a servidor do Banco Central.
A autonomia para o Legislativo e o Judiciário disporem sobre seus salários gerou vantagens sob diversos nomes e disfarces: reestruturação, reclassificação, reposição. Esses Poderes elevaram substancialmente sua participação na folha de salários da União, disparando demandas por tratamento equivalente no Executivo.
Não é absurdo o Legislativo e o Judiciário terem poderes para propor seus salários. O incorreto é mandarem a conta para o Tesouro sem qualquer chance de defesa para o contribuinte. Dificilmente existe essa situação em outro país. O normal é a iniciativa pertencer ao Executivo ou se dar a este o direito de veto sobre a criação da despesa.
A regra da estabilidade piorou com o regime único. Enrijeceu a administração e inibiu o uso de técnicas modernas na gestão e no controle do aparelho do Estado. Nem na Alemanha, pátria de Max Weber e detentora de serviço público invejável, a estabilidade é para todos. Aplica-se apenas a fiscais, militares e juízes e semelhantes.
As propostas do governo, oportunas, estão sendo encaminhadas com firmeza, discrição e competência. Em 1989, final do período Sarney, era impossível fazer algo, pois se vivia a embriaguez posterior ao porre democrático da Constituição ``cidadã". Com Collor, houve uma mistura de amadorismo, marketing político e prejuízos à imagem do funcionalismo. Itamar preocupou-se essencialmente com a isonomia.
A estabilidade se aplicaria apenas às funções exclusivas do Estado. Haveria regimes jurídicos diferenciados. Todo aumento de despesa de pessoal dependeria de lei, permitindo o veto, a transparência e a defesa do Tesouro. A norma sobre isonomia desapareceria da Constituição. Passaria a constituir um direito normal, reduzindo as absurdas demandas de equiparação.
O campo das propostas é ainda mais amplo, incluindo a revisão do direito de greve do funcionalismo, que jamais poderia coexistir com a estabilidade. Consideradas todas as despesas, o governo vai mexer com um vespeiro de interesses. As resistências serão enormes. Ainda estão vivas na classe política as visões distorcidas que geraram os retrocessos da Constituição.
Desinformação, ingenuidade e corporativismo foram os ingredientes de 1988. Muitos constituintes pensaram honestamente em proteger o funcionalismo contra a demissão política (estabilidade), evitar a atribuição de privilégios a determinadas categorias (isonomia), reforçar a independência do Legislativo e do Judiciário (autonomia) e banir o nepotismo, restringindo drasticamente a contratação sem concurso público (regime único).
As organizações sindicais tentarão manter o status quo. A filiação está em declínio em todo o mundo em face das mudanças estruturais na economia, da terceirização e de outras formas de descentralização. No Brasil, entretanto, o direito à sindicalização e à greve no serviço público reforçou a decadente estrutura atual do sindicalismo.
As propostas geram espaço para a demagogia. Muitos parlamentares a elas se oporão ideologicamente, enquanto outros se sentirão constrangidos a apoiá-las com receio de perder dividendos eleitorais gerados por parentes, amigos e protegidos no serviço público. O corporativismo levará membros do Legislativo e do Judiciário a defenderem seus interesses com argumentos incríveis, inclusive o da democracia.
Sobra competência na condução da matéria pelo Executivo, mas podem faltar forças no Congresso para resistir a todas as pressões. Algumas propostas podem não passar e outras vingarão apenas parcialmente. É assim também em outras democracias. Por isso, vai demorar.
É difícil em qualquer país lidar com visões sedimentadas na classe política e com minorias capazes de bloquear o processo decisório. No Brasil, as dificuldades são maiores porque os partidos não possuem coerência interna, nem mecanismos para agregar interesses e refletir sempre no Congresso a vontade majoritária da sociedade.
Apesar das resistências, existem fundadas expectativas de que acabará prevalecendo o interesse da sociedade. Quando os obstáculos no Congresso forem vencidos, teremos dado um passo firme rumo à modernização. Melhorará a capacidade de implementação de políticas públicas, e daí a governabilidade. O funcionalismo ganhará com a elevação das oportunidades de ascensão, reconhecimento do mérito e satisfação profissional.

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