São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 1995
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O jardim do Éden

JOESTEIN GAARDER
DE ONDE VEM O MUNDO?

Não se pode experimentar a sensação de existir sem se experimentar a certeza que se tem de morrer, pensou. E é igualmente impossível pensar que se tem de morrer, sem pensar ao mesmo tempo em como a vida é fantástica.
Sofia lembrou-se de que sua avó dissera algo semelhante no dia em que soube de sua doença. - Só agora entendo o quanto a vida é rica - foram suas palavras.
Não era triste que a maioria das pessoas tivesse primeiro que ficar doente para só então entender o quanto a vida é bela? Ou então que tivessem de encontrar uma carta misteriosa na caixa de correio?
Talvez fosse melhor verificar se não havia chegado mais alguma coisa. Sofia correu até o portão e examinou o que havia dentro da caixa de correio. E estremeceu da cabeça aos pés ao descobrir outro envelope idêntico ao primeiro. Será que ela verificara direito se a caixa estava realmente vazia da primeira vez que apanhou a correspondência?
O outro envelope também trazia o seu nome. Abriu-o e tirou uma pequena folha de papel, igual à primeira, em que estava escrito:

Não faço a menor idéia, pensou Sofia. Mas também ninguém sabe! E apesar disso Sofia achou a pergunta pertinente. Pela primeira vez em sua vida ela pensava que era praticamente impossível viver num mundo sem ao menos perguntar de onde ele vinha.
Sofia estava tão perturbada com as duas cartas misteriosas que resolveu se enfiar em sua caverna. A caverna era o seu esconderijo secreto. E ela só ia para lá quando estava muito brava, muito triste ou muito alegre. Hoje ela estava muito confusa.
A casa vermelha ficava no meio de um grande jardim. Nele havia muitos canteiros de flores, groselheiras e arbustos de uva-espim, árvores frutíferas de diferentes qualidades, um extenso gramado com um balanço e até mesmo um pequeno pavilhão, que seu avô construíra para a sua avó quando o primeiro filho deles morreu, algumas semanas depois de ter nascido. A criança chamava-se Marie. Na lápide da sepultura havia a seguinte inscrição: ``Pequena Marie, presente de Deus, nos disse um olá e logo um adeus".
Num canto do jardim, mais atrás ainda do pé de framboesas, havia uma folhagem bem densa, que não dava flores nem frutos. Na verdade, era uma velha sebe que fazia a divisa com a floresta; mas como nos últimos vinte anos ninguém tinha se preocupado em podá-la, ela se transformara num emaranhado impenetrável de galhos e ramos. Sua avó contava que, durante a guerra, quando as galinhas ciscavam livremente pelo jardim, a sebe dificultava a entrada de raposas que queriam pegá-las.
Para todos os outros a velha sebe era tão inútil quanto a velha coelheira lá da frente do jardim. Mas isto só porque eles não conheciam o segredo de Sofia. Há muito tempo, tanto que nem se lembrava, Sofia descobrira uma estreita passagem na sebe. Quando atravessava a passagem se arrastando por entre os galhos, chegava a uma grande cavidade no interior da sebe. Aquilo era a ``caverna", seu esconderijo. Ali ela podia ter a certeza de que ninguém a encontraria.
Com os dois envelopes na mão, Sofia atravessou o jardim correndo e, de quatro, apoiando-se sobre os cotovelos como uma foca, entrou pela sebe. A caverna era tão grande que Sofia quase conseguia ficar de pé lá dentro. Hoje, porém, preferiu sentar-se sobre umas raízes bem grossas que brotavam do chão. Dali, através de dois pequenos buracos, podia enxergar por entre os galhos e folhas. E embora nenhum desses buracos fosse maior do que uma moeda de cinco coroas, ela tinha uma visão completa do jardim. Quando era pequena, gostava de ficar vendo sua mãe e seu pai andando por entre as árvores à sua procura.
Que perguntas mais capciosas! E de onde vinham as duas cartas? Isto era uma coisa quase tão misteriosa quanto elas.
Quem teria arrancado Sofia de seu cotidiano e a teria confrontado de repente com os grandes mistério do universo?
Pela terceira vez, Sofia foi até a caixa de correio.
Só agora o carteiro tinha trazido a correspondência normal. Sofia apanhou um grosso maço de material de propaganda, jornais e duas cartas endereçadas à sua mãe. Havia também um cartão-postal, com a foto de uma praia tropical. Virou o cartão para ler o que estava escrito. O cartão tinha um selo da Noruega e o carimbo ``Regimento da ONU". Seria um cartão de seu pai? Mas ele não estava trabalhando bem longe dali? Além do mais, aquela não era a sua caligrafia.
Sofia sentiu o coração bater um pouco mais rápido, quando leu o endereço do cartão. ``Hilde Moller Knag, a/c Sofia Amundsen, Kloverveien, 3..." O restante do endereçamento estava certo. No cartão estava escrito:

Querida Hilde!
Muitas felicidades, de todo o meu coração, pelos seus quinze anos. Como você deve saber, quero te dar um presente que te ajude a crescer como gente. Desculpe-me se mando o cartão aos cuidados de Sofia. Foi a forma mais fácil que encontrei.
Beijos, Papai.

Sofia correu para casa e entrou às pressas na cozinha. Sentia que uma tempestade rugia dentro de si. E o que era isso agora? Quem era essa Hilde que fazia 15 anos exatamente um mês antes de ela própria também fazer quinze anos?
Sofia foi buscar a lista telefônica que ficava no corredor. Havia muitas pessoas de sobrenome Moller, algumas até de Knag. Mas em toda a grossa lista telefônica ninguém se chamava Moller Knag.
Mas por que será que um pai mandaria um cartão de aniversário para o endereço de Sofia, se não havia dúvida de que ele deveria ir para outro endereço? Que pai, em sã consciência, mandaria um cartão-postal propositadamente para um endereço errado, evitando assim que seus votos de feliz aniversário chegassem até a filha? Por que esta seria ``a forma mais fácil"? E, sobretudo, como ela, Sofia, poderia encontrar Hilde?
E assim Sofia ganhou mais um problema para ficar quebrando a cabeça. Tentou mais uma vez ordenar seus pensamentos.
Em poucas horas de uma única tarde ela tinha sido colocada diante de três enigmas. O primeiro era a questão de saber quem havia colocado os dois envelopes brancos na sua caixa de correio. O segundo eram as difíceis perguntas que estas cartas lhe propunham. E o terceiro era saber quem era essa Hilde Moller Knag e por que ela, Sofia, tinha recebido o cartão de aniversário em lugar dessa desconhecida.
Ela tinha certeza de que estes três enigmas de alguma forma tinham qualquer coisa em comum, pois até aquele dia ela tinha levado uma vida absolutamente normal.

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