São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 1995
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A arte e seus mistérios

MOACYR SCLIAR
Era uma vez uma cidade no interior de um belo país tropical. Uma cidadezinha pequena, modesta, mas que se orgulhava de ter sido o berço natal de um músico muito conhecido e querido. Alguém pensou em fazer uma homenagem a essa figura tão ilustre, idéia que foi recebida com entusiasmo por todos. Mas qual seria a homenagem?
Uma estátua, claro. Desde que o mundo é mundo, pessoas importantes são homenageadas com estátuas. Um artista foi procurado e disse que aceitava a tarefa, desde que lhe dessem total liberdade, com o que todos concordaram: afinal, arte é isso, liberdade.
Durante meses o artista trabalhou em segredo no seu ateliê. Finalmente a estátua ficou pronta e foi colocada na praça principal, coberta com uma espécie de manto. Quando foi descerrado, na cerimônia de inauguração, o público não pôde conter uma exclamação de surpresa.
A estátua não tinha cara, o que de imediato gerou um protesto. Onde é que se viu, disse um antigo morador, uma estátua sem boca, sem ventas, sem oreia? É um descaramento, acrescentou um conhecido gaiato. E havia ainda um outro detalhe: o acordeão que a figura segurava não tinha teclas, e sim parafusos.
Perguntaram ao artista se a obra estava terminada. Estava terminada, sim, e ele não mexeria mais nela. Pelo menos um olho, pediu uma senhora. Nada; nem olho, nem nariz, nem orelha. E os parafusos? Não era coisa provisória? Não, os parafusos eram simbólicos e ficariam ali.
Naquela noite, uma fada (esta é uma história de fadas) que estava voando em direção à capital do país, atendendo a uma convocação extraordinária do Congresso de Fadas, perdeu o rumo e desceu na praça principal da cidade. Viu a estátua e, como Pigmaleão, apaixonou-se de imediato (Pigmaleão, segundo a lenda, apaixonou-se pela estátua que ele mesmo tinha feito. Agora: fada tem o direito de se apaixonar por qualquer estátua. Mesmo que não seja obra sua. Mesmo estátua sem cara). E de imediato entabulou conversação. Os leitores vão perguntar como é que falava uma estátua sem boca. A história não conta.
Ventriloquismo, talvez.
- Por que você não tem olhos? -perguntou a fada, que era muito curiosa.
- É para não ver esses artistas -respondeu a estátua, com azedume.
- E por que você não tem orelhas?
- É para não ouvir esses artistas.
- E por que você não tem boca?
- É porque eu não engulo esses artistas -suspirou a estátua, pensando: ah, se eu tivesse boca, você teria o mesmo destino da Chapeuzinho Vermelho. A fada não era de jogar fora.
Aí a fada notou o estranho detalhe do acordeão. Mas não precisou perguntar: sabia que aqueles parafusos estavam ali para ajudar os muitos que, neste mundo, têm um parafuso de menos.

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