São Paulo, sábado, 29 de julho de 1995
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STONES SEGUNDO RUSHDIE

SALMAN RUSHDIE

Bata palmas -Mick Jagger está no comando de Wembley e 70 mil pessoas o seguem cegamente. Parece uma daquelas demonstrações de ginástica em massa que os chineses costumavam encenar. ``Yea yea yea WOO", ele nos provoca, no meio de ``Brown Sugar", e nós repetimos o refrão. ``Vocês estão com a voz boa hoje", ele nos elogia, e por um instante nos sentimos como se todos nós fizéssemos parte da banda.
Quando eu tinha 20 anos, me ofereci como voluntário para tocar chocalho para a Incredible String Band, de Robin Williamson e Mike Heron, mas hoje acho melhor fazer vocais de fundo para os Rolling Stones. Num grande show de rock a platéia é o evento, tanto quanto os músicos ou o próprio espetáculo -e Mick Jagger sabe disso. Assim, por duas horas e meia, enquanto Keith toca seus ``riffs" e beija sua guitarra e Charlie garante a base com sua bateria, Mick toca o público, como se este fosse seu instrumento.
Como é a sensação de estar diante de dezenas de milhares de pessoas, controlando-as, trabalhando-as como se estivesse no ambiente tranquilo de uma sala de estar? Dois anos atrás (sempre é bom começar a pesquisar com antecedência) seu correspondente se viu por alguns poucos minutos sobre o palco de Wembley com o U2, portanto está em condições de fazer uma breve descrição.
As luzes o circundam, como uma parede. Você mal consegue enxergar para além dos seguranças, até as primeiras fileiras de rostos virados para cima. Mais para trás não se vê nada. O espaço que se percebe dá a impressão de quase intimidade; mas então a multidão invisível começa a urrar como um monstro de ficção científica e você, se é um romancista que está naquele palco por obra do acaso, entra em pânico. Afinal, 500 pessoas formam uma platéia literária grande, mil uma platéia gigante -mas o que dizer disso aqui? O que se espera que você faça com essa multidão? Cante para ela? Mas -exatamente como nos melhores pesadelos- você não sabe cantar uma nota sequer. É nesse momento que o autêntico Astro do Rock toma conta do palco. E você, postado ao lado do Astro, observando-o persuadir, acariciar e controlar a hidra invisível que está lá fora, se sente mais do que apenas impressionado. Sente-se grato.
Eu já havia estado com Bono algumas vezes, mas quando olhei para seu rosto, ali no palco de Wembley, vi um estranho. Compreendi então que quem estava presente era o Astro que normalmente se mantinha escondido dentro dele, uma criatura tão poderosa quanto aquele monstro para quem cantava, tão avassaladora que só podia ser solta com segurança dentro dessa jaula de luz. Na terça à noite, o astro que existe dentro de Mick Jagger estava livre e solto em Wembley. É uma criatura que existe há bem mais tempo do que o U2; é velha, imensa e brilhante.
Todas as piadas velhas e gastas sobre os Stones foram recontadas na semana que passou. No estádio, me sentei ao lado de um homem que lembrava haver assistido os Stones em sua primeira turnê, em setembro de 1963. Há 32 anos -32 anos!- eu também assisti àquele show; eu tinha 16 anos e cabulei aula para pegar um ônibus e ir vê-los. Meu vizinho e eu não conseguimos chegar a um acordo sobre quem havia encabeçado aquele primeiro show: ele achava que era um daqueles caras que morreram num desastre de avião, enquanto eu dizia que havia sido Gene Vincent, cantando ``Be-Bop-a-Lula". Na verdade, nós dois estávamos errados. Eram os Everley Brothers e Bo Diddley. Os Stones estão aí há tanto tempo que a memória de sua platéia original já começou a falhar. Ou seja, faz tempo.
Quando você se encaminha a um supershow de rock de dimensões galáticas, como é o caso de ``Voodoo Lounge", é obrigado a passar sob chuvas meteóricas de fatos e pseudofatos. Além de todas aquelas constatações gastas -você sabia que a idade média dos Stones é maior do que a dos integrantes do governo britânico?-, você acaba ouvindo aquela velha história sobre Keith Richards ter se submetido a uma troca completa de sangue.
Hoje já sabemos, também, que, embora a turnê seja patrocinada pela Volkswagen, Mick prefere dirigir uma Mercedes; e que, apesar de todas suas posturas rebeldes, eles na realidade não passam de alpinistas sociais que curtem essa onda toda pelo dinheiro e pela fama. Também já sabemos que os Ramones vão se aposentar e aconselharam os Stones a fazer o mesmo, e que eles não pretendem fazê-lo, não enquanto os megamilhões de dólares continuarem entrando a rodo. Já ouvimos que quaquilhões de dólares chovem sobre as cabeças de nossos heróis. ``O que um garoto pobre pode fazer senão tocar numa banda de rock'n'roll?" Tudo bem. Hoje em dia eles talvez devessem cantar ``Diamond Life" em vez disso.
Mas então o dragão cuspiu fogo e todas as queixas se esvaneceram, tornando-se redundantes. A cobra hi-tech, criada por Mark Fisher se acendeu, vomitando fogo no céu noturno. Hoje em dia, Fisher, também responsável pelos mais recentes palcos do Pink Floyd e da ``Zoo-TV", é o nome certo a chamar se você estiver interessado em gastar uma fortuna para transformar estádios em mundos do futuro. Os promotores do show gostam de comparar a turnê a uma operação militar, mas a comparação não é exata. O mais espantoso é refletir que todo esse gigantismo teatral -equipe de 250 integrantes, quatro dias para erguer o palco, três equipes diferentes de técnicos de palco viajando pelo país, 12 quilômetros de cabos, a maior tela de vídeo Jumbotron do mundo, 56 trailers, nove ônibus e um Boeing 727, 3,84 milhões de watts de potência produzidos por geradores de 6.000 HP- está sendo empregado na causa da pura e simples diversão. ``É apenas rock'n'roll, mas eu gosto". É bom saber que o prazer também possui seus exércitos.
E desde o instante em que os Stones mergulharam em ``Not Fade Away" até ``Jumpin' Jack Flash", o único bis, o prazer foi intenso, o deleite, profundo. Foram duas horas e meia de puro prazer. O palco era uma maravilha pirotécnica, com luzes em cascata, erupções de fogos e o surgimento, como num toque de mágica -durante ``Sympathy for the Devil"-, de infláveis gigantes e fantasticamente estranhos -Elvis, uma cobra, uma criança-estrela, uma deusa hindu- que dançaram como enormes bonecos de vodu, escravos do ritmo.
E, além do palco, o som também foi magnífico, todas as notas ricas e melífluas. Mick dançou como um bailarino de Bharat Natyam com 3,84 milhões de watts de potência correndo por suas veias e Keith ficou plantado na frente, dedilhando sua guitarra no estilo clássico dos heróis do rock. Keith dominou o palco sem esforço algum, enquanto Mick saltava e corria. Keith não corre -ele deixa seu parceiro fazê-lo. Provavelmente deveria deixar Mick cantar sozinho, também. Ou pelo menos não deveria tentar o destino e os críticos, cantando canções chamadas ``The Worst".
Na segunda canção, ``Tumbling Dice", já estava claro que a ``casa de força", na qual o baixista Daryl Jones se juntara a Charlie Watts, estava tão potente quanto sempre. Também não demorou a ficar claro que a vocalista Lisa Fischer também possui seu lado estrela -fato evidenciado em seu dueto com Mick em ``Gimme Shelter". Não contente em subir ao palco usando o que parecia ser lingerie de couro, saltos afiados estilo ``foda-me, por favor" e tiras de couro subindo até as coxas, ela desfraldou uma voz rica e sexy com notas altas capazes de penetrar em seu coração como lanças certeiras.
As novas canções conseguiram se sustentar, mas o que realmente mexeu conosco foram os clássicos -inevitavelmente, pois o riff de ``Satisfaction" e a genialidade de ``Honky Tonk Woman" já penetraram tão fundo em nosso sangue que possivelmente já podemos transmitir seu conhecimento por via genética a nossos filhos, que vão nascer cantarolando ``how come you dance so good" e os velhos versos satânicos ``pleased to meet you, hope you guessed my name".
É tão bom que os Stones não tenham caído naquela armadilha tipo Bob Dylan, de assassinar suas próprias canções antigas. Em consequência disso, Wembley estava repleta de teens vibrando felizes ao som de músicas mais velhas do que eles, mas que eles sentiam como novas. ``Voodoo Lounge" não é um show nostálgico; essas canções não são peças de museu. Basta ouvir a guitarra de Keith em ``Wild Horses". Essas canções estão vivas.
Havia um senhor de cabelos grisalhos, usando jeans e camiseta cor-de-rosa -ainda doidão, mesmo depois desses anos todos-, que teve que ser escoltado para fora por um pelotão de seguranças. E uma garota morena usando uma roupa que parecia ter sido pintada sobre seu corpo, que se levantou no setor chique e começou a dançar com tanta volúpia que as pessoas (homens) desviavam o olhar do palco para assisti-la.
Alguns beijos nos mamilos cometidos por e entre Mick e Lisa Fischer chamaram nossas atenções de volta ao palco. Charlie Watts foi ovacionado. Não se poderia desejar mais. Os Rolling Stones podem não ser mais tão perigosos quanto antes, podem não mais representar uma ameaça à sociedade decente e civilizada, mas ainda sabem ``deixar sangrar". Yea yea yea WOO.

Tradução de Clara Allain

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