São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Estado, economia e sociedade

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

O governo brasileiro, ao invés de avançar na direção historicamente consagrada da democracia política das elites para a democracia econômica de massas, pretende fazer o caminho inverso, acompanhando a onda das "contra-reformas neoliberais que vêm avassalando o mundo inteiro na última década.
A proposta governamental é a abertura à economia mundial e a redução do Estado.
A nossa economia era por acaso fechada? Não. Desde meados da década de 70 que a nossa indústria vinha aumentando as exportações, usando o câmbio e o financiamento interno e externo. O coeficiente de exportação da indústria manufatureira evoluiu de 8,5% em 1980 para 19,8% em 1993. Esse último é superior aos coeficientes de abertura do Japão e dos Estados Unidos, que eram de 13% em 1992.
Convém lembrar que o Japão é a grande máquina exportadora do pós-guerra e sua economia fechada do ponto de vista das importações. Já os EUA são a maior potência continental que experimentou um enorme processo de abertura na década de 80 e que financia o seu déficit à custa do resto do mundo. E, no entanto, ambos os países são mais fechados do que o Brasil.
Qual será o nosso futuro com teses tão simplificadoras que pregam a abertura a qualquer custo (fiscal, financeiro e social) e redução das "gorduras do Estado?
No segundo semestre enfrentaremos no Congresso Nacional o 2º ato de uma ``tragédia-farsa" que se inaugurou no primeiro tempo com a "flexibilização dos grandes monopólios estatais. O novo rolo compressor tratará das reformas fiscal, administrativa e da Previdência (o conceito de Seguridade Social impresso na Constituição parece definitivamente varrido).
Quais são as ``idéias-força" dessas reformas? Diminuir as desigualdades sociais e regionais do país? Aumentar a eficiência e o controle público sobre as máquinas destroçadas do Estado? Qual nada; os objetivos são simplesmente reforçar o status quo.
1) A reforma tributária do governo propõe desonerar as exportações (mas o câmbio é intocável) e recentralizar na União o poder de controle e arrecadação (?) do imposto de consumo, hoje disperso entre o IPI e os ICMS (dos Estados) e o ISS (dos municípios), a pretexto de evitar uma guerra fiscal.
Dadas as pressões contraditórias da parcela da sociedade que tem algum poder econômico e político, é previsível uma guerrilha de bastidores que terminará provavelmente como a batalha de Itararé.
2) A reforma administrativa é um modelo de Estado Mínimo dos séculos 18 e 19. As carreiras do funcionalismo público limitar-se-ão às funções clássicas do Estado: poder de polícia, magistratura, diplomacia e arrecadação de impostos?
E a moeda? Ah! a moeda, já veremos, esse é um bicho mais complicado que não se limita à independência do Banco Central.
Quanto às funções sociais -educação, saúde e previdência-, essas devem ser "competitivas com o setor privado. O setor público deve limitar-se a funções supletivas sob a forma de gestão eficiente, descentralizada e, se possível, de direito privado.
Lá se vão os conceitos caros aos democratas de todos os matizes durante tanto tempo: o direito da população, em condições de universalidade e igualdade, a todos os bens públicos.
Mas isso, como mestre Bobbio reconhece, é hoje, como sempre, apenas uma demanda das esquerdas, pretensão que o atual governo acha ridícula, já que os tempos mudaram tanto e não há mais esquerda e direita!
O governo não deve intervir no mercado competitivo da educação! Ótimo, assim as mensalidades escolares do ensino privado mais de que dobraram, desde o plano, para uma inflação de 37%.
Colégios bons devem ser para ricos, os pobres devem recorrer à rede pública (em extinção) ou às antigas e novas fundações "beneficentes que, dados os seus bons propósitos, eficiência e alto espírito público, continuarão isentas de impostos e poderão recorrer a subsídios do Estado sem qualquer controle.
Os ministros da Saúde e da Educação lutam para ter ou manter verbas orçamentárias vinculadas. Coitados, são espíritos obsoletos que não entendem a boa técnica orçamentária moderna, que proíbe todo tipo de vinculação em nome da "flexibilidade da despesa, em particular dos juros das dívidas públicas, que devem ter espaço para crescer, enquanto não for feito o enésimo ajuste fiscal e não terminarem as privatizações salvadoras!
Então, depois de um período mais ou menos longo, dependendo da permanência e coesão do atual pacto do poder, a tarefa dos progressistas não será "reformar o Estado. Será regenerar, organizar e democratizar os espaços públicos e construir alianças sociais capazes de formar um povo e uma nação dignas desses nomes hoje tão vilipendiados.
Só aí, nesse movimento que já vem vindo desde a resistência democrática, as novas elites do poder serão questionadas e pressionadas a construir um projeto estratégico verdadeiramente nacional e democrático.
Esse processo histórico de ampliação e universalização dos direitos parece estar agora em retrocesso em quase todas as partes do mundo, enquanto a universalização mercantil, o fetiche do dinheiro e a acumulação patrimonial estão em paroxismo de expansão global.
Mas um país como o Brasil, de dimensões continentais e enorme desigualdade econômica e social, não pode caminhar muito tempo nesse processo de desmonte neoliberal nem aceitar que a remontagem do Estado se faça apenas a favor dos privilegiados.
Nessa conjuntura, é natural que as ofensivas das oposições sejam parciais e a resistência defensiva seja mais geral. Entretanto, a luta pelas verdadeiras reformas sociais continuará, ainda que seja um processo lento, duro e doloroso.
Muitas marchas sobre Brasília estão por vir e muitas oposições velhas e novas surgirão. O difícil vai ser construir, como dizia a velha esquerda gramsciana, um novo "bloco histórico que não inclua os velhos detentores do poder.
Teimosamente, continuamos acreditando que Estado, economia e sociedade não são separáveis e que não está à vista nenhum "admirável mundo novo global que deva substituir a autonomia e as funções de proteção econômica e social de um Estado democrático.

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