São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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O outro ramo da publicidade

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

O que aconteceria se o empresário italiano Luciano Benetton decidisse entregar a divulgação de sua marca de roupas a uma agência de publicidade? A julgar pelo que se vê nas televisões e cartazes pelo mundo afora, a imagem da Benetton derivaria de algumas situações mais ou menos previsíveis.
Por exemplo: mulheres descalças de pulôver, correndo sorridentes numa praia da Riviera italiana. Ou: adolescentes ``rebeldes" bonitinhos, fazendo caretas ao som de um rap, com tipografias modernas na tela e alternância de planos coloridos e preto-e-brancos. Ou: modelos de bem com a vida e a natureza, percorrendo paisagens nos Alpes, com a indispensável tomada de helicóptero em torno de personagem com braços abertos, no topo da montanha.
Ok, talvez alguém tivesse realmente uma boa idéia. Como teve a Thompson, agência que criou o slogan United Colors of Benetton, e que começou a despertar as primeiras atenções dos consumidores e dos meios de comunicação.
Mas uma coisa é certa: a última idéia que passaria pela cabeça de um publicitário seria fugir do espaço da TV e montar uma campanha a partir de temas como guerra, fome, morte ou Aids.
Dificilmente alguém verdadeiramente do ramo aconselharia o cliente a expor em via pública fotos de dezenas de genitálias masculinas e femininas. Jamais endossaria provocações com a Igreja -um padre beijando uma freira na boca- e teria urticária diante da sugestão de unir a marca do fabricante a uma foto de um doente terminal com Aids, na cama, amparado pela família, numa composição de evocações bíblicas.
É tudo isso, como se sabe em qualquer grande cidade do planeta, que o fotógrafo italiano Oliviero Toscani vem fazendo para promover a marca do empresário Luciano Benetton. Na última segunda-feira, ele voltou ao ar numa reprise do programa ``Roda Viva", da TV Cultura, exibido há duas semanas.
Cercado de jornalistas e publicitários, Toscani acabou vendo-se sentado num banco de réu. Acusado por Francesc Petit, da agência DPZ, de ser péssimo publicitário e de fazer uma campanha ``porcaria", Toscani passou ao ataque. Disse que os publicitários formam uma ``máfia internacional" e rebaixam a criatividade em nome da comodidade e do dinheiro. Finalmente, comparou o que chama de ``publicidade tradicional" a ``um cadáver sorridente sobre o qual os publicitários passam perfume diariamente".
Um oportunista, um ingênuo ou uma inteligência singular?
``Não o chamaria de oportunista", diz Washington Olivetto, da W/Brasil, à Folha. ``É um grande fotógrafo. Não é um publicitário nem pretende ser. Mas, não apenas no nome, às vezes ele é bastante tosco".
Nem todos pensam assim. ``O que aconteceu no programa foi uma tentativa, por parte dos publicitários, de desautorizar o Toscani. De neutralizar o que ele estava falando, com o argumento de que, por não ser um publicitário tradicional, não poderia fazer o que faz", diz o psicanalista Luiz Tenório Lima, no papel de entusiasmado telespectador.
``É preciso avaliar a efetividade do que ele faz. Do ponto de vista das vendas, não é eficiente. A Gap, sua concorrente, que tem boa publicidade, vende, só em Nova York, mais do que a Benetton no mundo inteiro. E, do ponto de vista da novidade, a publicidade não ganha nem perde com o trabalho dele", acredita Olivetto.
Crítico do que considera uma excessiva valorização da publicidade na cultura contemporânea, Tenório argumenta, parafraseando o entrevistado: ``Quem dita as regras? Onde está escrito que a publicidade deve ser feita dessa forma totalmente alheia à realidade? Quem disse que ela não pode comportar o conflito? Toscani evidentemente também está vendendo uma marca, mas só que ele resolveu fazer isso de uma maneira diferente, que parece ameaçar os cânones da publicidade e os próprios publicitários".
No programa, o italiano apresentou uma tese simples e cristalina: a publicidade erigiu códigos e fórmulas para constituir um ``sistema" que se institucionalizou, aplainou a criatividade e tornou-se redundância. Mais: o sistema da ``publicidade tradicional" produziu um mundo de artificialismos, divorciado da realidade, cuja função é ``afirmar que o consumo é o caminho para o sucesso".
Olivetto não se convence: ``Do ponto de vista social, a pseudo-sinceridade do trabalho de Toscani é ainda mais nociva do que a venda explícita. Ele pega a adorável ingenuidade dos jovens e usa aquelas imagens para vender pulôver".
Mas Toscani não se limitou a uma argumentação conteudista. Sem colocar-se fora do campo mais amplo da propaganda, explicou seu trabalho como uma tentativa de desestabilizar o repertório consagrado, levando para seu interior imagens que, muitas vezes publicadas sem maior impacto na imprensa, ganham no território da publicidade uma nova leitura. Ou seja: funcionam como ruído, atritam com os códigos homologados, surpreendem o receptor e acabam investidas, por isso mesmo, de alta taxa de informação.
``Essa discussão é tão moderna quanto discutir se a guitarra elétrica deve ou não ser usada na música popular", ironiza Olivetto.
Talvez sim. Mas o fato é que, sob vaias dos publicitários, Toscani conseguiu, com a ajuda do ``Roda Viva", deixar o Brasil cercado pela aura de uma espécie de Marcel Duchamp ou Picasso do reclame.
A comparação pode ser irônica (ele mesmo a utilizou, numa incontinência de ego, para explicar o que faz), mas também remete a um fato histórico: publicidade e arte têm um antigo flerte.
Como fonte de renda, de inspiração ou de problematização da crescente mercantilização da vida contemporânea, o fato é que a publicidade teve interface com diversos artistas modernos.
Mas é verdade também que, até a primeira metade do século, quando a televisão começou a engatinhar -e o mundo cingia-se entre o sonho consumista e o comunista-, a propaganda não era exatamente o que é hoje. Aparecia como advento da sociedade moderna, com sua linguagem instantânea e sintética, e possuía uma dupla face: a de embalar o consumo e a de convocar à transformação social.
``A questão a ser respondida no caso do Toscani", observa o poeta e crítico Haroldo de Campos, ``está na ética, ou seja, até que ponto ele não cai na apelação, no uso da miséria humana como propulsor do consumismo?".
Haroldo foi, nos anos 50, um dos integrantes do movimento da poesia concreta, que teve seus flertes com a publicidade. A ponto de um outro célebre participante, Décio Pignatari, ter criado uma agência e produzido, entre outras, a marca Lubrax, óleo lubrificante da Petrobrás.
``Acreditávamos que as renovações que aconteciam no campo da poesia e da arte poderiam ter desdobramentos pragmáticos, como uma espécie de estética aplicada -no design e na publicidade, por exemplo", explica Haroldo.
``Queríamos também, com isso, criar uma conexão estética com a agitação política e ideológica", diz, mencionando o poeta Maiakóvski, que participou com cartazes e slogans da propaganda revolucionária russa.
Um desses slogans, feitos para que a população preferisse armazéns do Estado, foi traduzido por Haroldo: ``O bom? No Mosselprom!" (nome do armazém). ``Disseram que não era um trabalho à altura de poetas. Mas Maiakóvski respondeu dizendo que aquilo era poesia e da melhor qualidade".
Dificilmente hoje alguém reivindicaria poesia na linguagem publicitária -embora não seja difícil encontrar linguagem publicitária em obras que se reivindicam artísticas. Num mundo em que os sonhos de transformação social foram congelados, a propaganda parece ter chegado a uma identificação perfeita com o neocapitalismo triunfante.
É nessa aderência que Toscani parece tentar tocar o dedo, correndo os riscos das ambiguidades que o tempo impõe. Pois, se o seu trabalho atrita com a linguagem edulcorada da propaganda, não deixa, por isso, de realimentar o sistema que pretende problematizar -servindo-lhe como ampliador de repertório e fonte para novos clichês.

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