São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Uma psicologia das massas

JORGE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na manhã de 15 de julho de 1927, o jovem Canetti sentiu pela primeira vez o fascínio e o poder de uma manifestação de massa. Os trabalhadores de Viena, revoltados com a absolvição dos responsáveis pela morte de vários operários, marcharam espontaneamente até o Palácio de Justiça e atearam fogo ao edifício. A polícia reagiu, e 90 pessoas caíram mortas em meio a multidão. Elias Canetti acompanhou todo o episódio, subjugado pela irresistível força de atração da massa. Esta experiência o marcou pelo resto da vida, e os fatos trágicos, heróicos e patéticos que ali presenciou, tornaram-se motivos constantes de sua obra.
A necessidade de compreender os acontecimentos daquele dia fez com que Canetti mergulhasse por mais de 30 anos na leitura apaixonada de tudo o que pudesse contribuir para a solução do enigma: ``Aproveitava todos os momentos livres para o estudo daquilo que realmente me era importante. Eu procurava me aproximar, pelos caminhos mais diversos, e aparentemente muito absurdos, daquilo que experimentara como massa", comenta em ``Uma Luz Em Meu Ouvido" (Cia. das Letras). O resultado destes anos de pesquisa é o livro ``Massa e Poder", publicado em 1960, que retorna às livrarias brasileiras em nova e competente tradução de Sérgio Tellaroli.
Canetti inicia o livro com uma espécie de fenomenologia das massas. O objeto é exposto a partir de um paradoxo: a massa se caracterizaria justamente pela inversão do pavor que os homens sentem diante do contato com o próximo ou com o desconhecido. Na densidade da massa, a diferença é suprimida, e o medo de que o outro possa causar a morte (sentimento inerente ao homem, segundo Canetti), é então superado: ``Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os outros, tanto mais seguros eles se sentirão de não se temerem mutuamente".
Lançando mão das mais diversas fontes, de experiências pessoais a mitos de diversos povos, casos psiquiátricos e referências literárias, Canetti procura apresentar sistematicamente o fenômeno da massa, classificando suas várias formas e descrevendo suas características principais, suas leis de formação e seus símbolos.
A morte, tema constante e fundamental de sua obra, é o elemento que aproxima massa e poder. O detentor do poder é, em última instância, um sobrevivente, e toda ordem cumprida representa uma vitória sobre seus potenciais assassinos. Não por acaso, o momento final da relação entre massa e poder é visto por Canetti no discurso do paranóico, onde o delírio de perseguição é acompanhado pelo sonho de um poder irrestrito.
A espantosa diversidade dos exemplos utilizados é exigida pelo método pouco ortodoxo do livro, cujo ecletismo é justificado unicamente pela convicção do autor de que sua experiência histórica pode contribuir para a observação de certas homologias estruturais existentes entre as diversas aparições do fenômeno, nas mais variadas culturas e épocas.
Em uma conversa com Canetti, publicada na revista ``Novos Estudos Cebrap" nº 21 (1986), Adorno reconheceu nesta característica do método o valor, mas também a fraqueza, do livro. O enfoque original do problema da relação entre massa e poder possibilitaria a análise de fenômenos esquecidos ou não levados em conta pela ciências tradicionais, sem que estes fossem de antemão submetidos a esquemas rígidos de análise. O resultado, entretanto, seria comprometido por uma dose ``escandalosa" de subjetividade no tratamento das questões, que impossibilitaria o reconhecimento do quanto as diversas formas de massa e poder estariam ligadas ao desenvolvimento real das formas de organização da sociedade.
Esta ambivalência torna-se evidente quando Canetti analisa, por exemplo, o tão discutido tema da relação entre inflação e anti-semitismo na primeira metade do século, utilizando as analogias do conceito de massa para explicar uma situação efetiva de poder. A moeda é, à primeira vista, algo confiável, sendo necessário apenas protegê-la de olhares indiscretos.
Mas na inflação, segundo Canetti, a moeda perde subitamente sua personalidade, e é jogada ao confuso e aniquilador turbilhão das massas, personificado monetariamente na figura antes glorificada dos ``milhões". Há uma dupla desvalorização: tanto o indivíduo quanto as massas são afetadas. Este processo é acompanhado pela necessidade psicológica de encontrar um objeto que seja passível de uma desqualificação ainda maior. Hitler o teria encontrado na figura dos judeus: ``Foi essa inflação, como fenômeno de massa, que os alemães descarregaram sobre os judeus".
Psicologia, mitologia, religião e história reúnem-se em uma argumentação por vezes arbitrária, mas que conserva em cada descrição e comentário a capacidade de remeter o leitor à sua própria experiência da massa e do poder, em um livro onde o potencial de revelação proporcionado pela boa literatura supera em muito a intenção teórica do autor.

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