São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Um Nobel contra a tirania

ONOOKOME OKOME
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE CALABAR (NIGÉRIA)

Para os nigerianos, a independência foi uma explosão de esperanças nos anos 60. Foi um período de estabilidade política, em que o país surgiu como um provável modelo para a marcha democrática da África.
Nos anos 80, o ``sonho" da Nigéria já não passava de um conto de fadas que o vento levou. No lugar da estabilidade política, alimentada pelo ``boom" do petróleo, instituiu-se um reino de anarquia. A degeneração começou com a derrubada do marechal Gowon em meados dos anos 70.
O general Murtala Muhammed deu lugar ao governo circunstancial do marechal Obasanjo, que nada fez de decisivo até 1979, quando voluntariamente entregou o poder ao civil eleito Alhaji Aliu Shehu Shagari. Em 1983, um golpe militar levou ao poder o general Buhari. Em agosto de 1985, o general Babangida organizou cuidadosamente um novo golpe palaciano.
Desde então, o nível de vida social e político dos nigerianos tem declinado progressiva e inexoravelmente. Babangida deixou o governo em 1993, não sem antes instalar um governo de transição, chefiado por Ernest Shonekan (empresário bem-sucedido do sudoeste do país), e após anular as eleições presidenciais vencidas por M.K.O. Abíola.
Wole Soyinka, primeiro africano a ser agraciado com o prêmio Nobel, é intransigente em suas denúncias desses desastres políticos, especialmente em seus escritos.
A literatura de Soyinka compõe um testemunho cortante dessa cruzada social, que se resume adequadamente em sua afirmação de que ``a justiça é a primeiro condição da humanidade". Seus escritos, como os de seu compatriota Chinua Achebe, são uma descrição gráfica das fases de transição da vida social, política e cultural da Nigéria. Uma observação cronológica das peças teatrais de Soyinka equivale, em muitos sentidos, ao estudo da política nigeriana.
Numa entrevista ao crítico e acadêmico radical Biodun Jeyifo, ele afirma que ``quem se cala diante da tirania, está destinado a morrer". A frase aparece também em seus escritos do cárcere, intitulados ``The Man Died". São notas autobiográficas do período entre 1967 e 69, quando Soyinka permaneceu confinado em solitária e às vezes submetido à tortura física, sob suspeita de ser simpatizante da causa de Biafra durante a Guerra Civil da Nigéria.
A peça ``A Dance of the Forest", escrita sob encomenda para ser encenada na celebração da independência, ofereceu-lhe a oportunidade de descrever os novos rumos do país. Numa enérgica incursão literária, desenvolvida por uma superposição de múltiplas metáforas, Soyinka analisa o destino da reunião das tribos que representa a nova nação.
Entre as muitas metáforas que conformam a estrutura episódica dessa peça difícil, a imagem da ``meia-criança" (Abiku) é significativa. A tese central é simples: a nação é um natimorto. Ainda não alcançou existência. Essa visão mostrou-se acertada quando a faixa oriental da população de língua igbo tentou separar-se no final dos anos 60, dando origem à Guerra Civil de 1967-70.
Em ``Trials of Brother Jero" e ``Jero's Metamorphosis", Soyinka golpeia a hipocrisia religiosa da Nigéria. Em ``The Road", uma peça intensamente filosófica, volta-se para o exame das interrogações de um professor sobre o significado da morte. ``Opera Woyonsi" é uma acusação triunfante das trapalhadas da administração de Gowon. ``A Play of Giants" castiga as idiotices praticadas por governos africanos despóticos, como Idi Amin, Jean Bedel Bokasa, e os que obedecem suas ordens.
Após receber o Nobel de literatura, publicou a peça ``From Zia With Love", um ataque direto ao governo de Buharl/Idiagbon, que se estendeu de 1983 a 85, notabilizando-se pela arrogância, as medidas repressivas sobre a mídia e o ``silêncio dignificado", nas palavras de Soyinka.
O interesse político de Soyinka não se restringe, certamente, ao gênero dramático. Em seus romances -``The Interpreters" e ``Season of Anomy"-, disseca o modelo de decadência social através de personagens da vida real. Soyinka escreveu também mais de uma dezena de livros de poemas, que circulam ora pelo político, ora pelo cultural.
A crítica nigeriana mostra-se, por vezes, insatisfeita com o fato de o teatro de Soyinka, ou sua literatura como um todo, ser elitista demais para ter relevância imediata na política do país. Há também a queixa de que ele seria frequentemente esotérico, mistificando os problemas. Não é totalmente verdade. De todo modo, são poucos os que deixam de reconhecer a imensa contribuição da literatura de Soyinka para o desenvolvimento político do país.
Ciente das controvérsias em torno de seus escritos, Soyinka percebeu que, para atingir a vasta população iletrada, deveria utilizar-se de um meio mais popular em sua luta contra a tirania, as injustiças políticas e a degeneração moral da sociedade contemporânea nigeriana. Gravou então um ``long play", ``Unlimited Liability Company", lançado no exato momento em que o resultado das eleições gerais de 1983 ia ser divulgado.
Fundindo sátira social com canções populares, o disco faz um longo comentário sobre as atrocidades sociais e políticas cometidas pelo governo civil. Castiga o regime de Shagari, acusando-o de negligência ao dever, corrupção institucionalizada, ostentação de poder e total insensibilidade para com as necessidades da gente comum.
O disco alcançou sucesso imediato -não por mérito exclusivo de Soyinka, que contou com a colaboração do maestro de ``highlife music" Njamanze, que conta com legiões de fãs entre a população urbana da Nigéria. Como era de se prever, o governo de Shagari proibiu a execução pública das canções.
Soyinka tentou a sorte também no cinema. Em 1970, em colaboração com uma produtora local, Calpenny Nigeria Limited, rodou ``Kongi's Harvest", adaptando uma peça sua de mesmo título. O filme faz extenso comentário sobre o tipo especial de ditadura enfrentada por uma sociedade africana tornada independente.
Em 1984, rodou ``Blues for a Prodigal". James Gibbs descreve apropriadamente o contexto social deste filme, dizendo que se trata de ``uma obra de ocasião, uma resposta a um governo particular". Como o ``long play", o filme é uma resposta virulenta à administração de Shagari, constituindo o primeiro filme político ``underground" na breve história cinematográfica da Nigéria.
Para Soyinka, o regime de Babangida inicialmente prometia sanear o sistema social e político. Após o regime de Buhari/Idiagbon, descrito por Soyinka como um bando de surdos, as perspectivas de mudança eram grandes. Duraram pouco, mas deram ainda tempo a Soyinka de aceitar o posto de Chefe da Comissão de Segurança das Estradas Federais, que ajudou a instituir.
Os críticos atacaram por aceitar um cargo dos militares, mas ele também manteve um ``silêncio dignificado", esperando que o tempo por si lhe desse razão. Seu objetivo principal era reduzir o número de mortes nas estradas nigerianas. Obteve sucesso em vários sentidos. E conseguiu também provar que é possível encontrar uma geração de nigerianos ainda abnegada diante do predomínio dos filisteus. Soyinka se demitiu do cargo no ano passado, mas sem deixar de apoiar entusiasticamente o trabalho feito pela Comissão.
A Liga Democrática Africana (LDA) constitui o novo front de Soyinka para combater a ditadura sanguinária do novo regime. Sob os auspícios da LDA, apontou para a mídia ocidental as razões pelas quais o Ocidente deve ajudar a instalar a democracia na Nigéria.
Mas o governo não engoliu isso. Em 3 de novembro de 1994, ele foi convidado para o encontro do Pen Club pelo presidente-escritor da República Tcheca, Vaclav Havel. O regime de Abacha confiscou seu passaporte, negando-lhe a honra de comparecer ao 61º Congresso Mundial do Pen em Praga, que começava em 6 de dezembro.
Cerca de duas semanas após essa manifestação de estado de terrorismo, os membros da LDA se reuniram e organizaram para Soyinka o que a BBC chamou de ``viagem da caça ao pombo", fazendo-o sair da Nigéria por um ponto vulnerável da fronteira, em 20 de novembro de 1994. Foi um dos ``planos contingenciais" de Soyinka sob o regime de Abacha, que ele descreve como ``ilegal e sádico". Hoje, encontra-se exilado em Paris.
A era de Abacha pode se transformar num dos mais sangrentos, sujos e no mais ferrenhamente antidemocrático dentre os regimes militares auto-impostos, mas Soyinka parece destinado a sobreviver a ele -no exílio ou na Nigéria. Para ele, a literatura não se resume à ressurreição de um passado cultural ou a uma viagem pessoal: é uma afirmação pessoal frente a uma existência coletiva -nossa existência. Mesmo no exílio, Soyinka mantém aceso o fogo da democracia em sua terra natal.

Tradução de LÚCIA NAGIB

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