São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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JOGOS DE BIOY

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Adolfo Bioy Casares, 80, que chega hoje a São Paulo, trazido pela Folha e pelo Instituto Cultural Brasil-Argentina (leia programação nesta página), é o mais importante escritor argentino vivo.
Amigo e parceiro de Jorge Luis Borges (1899-1986), com quem escreveu histórias policiais e editou coleções e antologias de textos fantásticos, Bioy Casares é autor de alguns livros fundamentais da ficção argentina moderna.
Entre eles, destacam-se os romances fantásticos ``A Invenção de Morel", ``Plan de Evasión" e ``O Sonho dos Heróis", além de vários volumes de contos, cujos temas oscilam entre o fantástico e a história de amor, frequentemente combinando a ambos.
Considerado por seus colegas de ofício um narrador extremamente refinado, Bioy Casares foi homenageado num conto de Julio Cortázar (``Diário para um Conto", em ``Fora de Hora") e em pelo menos dois de Borges (``Tlõn, Uqbar, Orbis Tertius", de ``Ficções", e ``O Homem no Umbral", de ``O Aleph").
Em 1990, ganhou em Madri o Prêmio Cervantes, o mais importante de língua espanhola.
Recentemente, publicou suas ``Memorias", pela editora Tusquets, que deve lançar em 1996 um volume de contos inéditos do autor, ``Irse". O conto que dá nome ao livro é publicado em primeira mão à pág. 5-6 desta edição.
Dois outros livros de Bioy Casares estão praticamente prontos e devem ser lançados em breve: ``En Viaje", uma espécie de diário de viagens do autor pela Europa; e um volume de fotos feitas pelo próprio escritor, a ser organizado por Daniel Martino.
Nos últimos anos, Bioy Casares sofreu dois duros golpes em sua vida pessoal. Em 1993, morreu sua mulher, a escritora Silvina Ocampo, com quem ele vivia desde 1940. No ano passado, num acidente de carro, morreu sua única filha, Marta.
Hoje, Bioy Casares divide com dois de seus três netos um amplo apartamento no elegante bairro da Recoleta, no centro de Buenos Aires. Escreve todos os dias, à mão, desde que escrever à máquina passou a lhe causar dores na coluna.
Nesta entrevista, o escritor fala sobre Borges, cinema, literatura, Argentina e Brasil.

Folha - O sr. descende de fazendeiros, e o campo foi muito importante em sua infância e juventude. Por que o sr. praticamente não escreveu ficção com ambientação rural?
Adolfo Bioy Casares - Bem, eu escrevi um livro de ensaio sobre o pampa e o gaúcho. Na ficção, não sei por quê, nunca me senti à vontade para escrever histórias rurais, preferi histórias urbanas. Mas tenho vontade de escrever um conto sobre o campo, quem sabe eu ainda o faça.
Folha - Quando o sr. e Borges se conheceram, em 32, ele já havia participado do movimento ultraísta e do grupo da revista ``Martin Fierro". Qual era, na época, a posição de Borges com respeito ao ultraísmo e às vanguardas em geral? E a sua?
Bioy Casares - Sentimos que havia uma afinidade entre nós, porque tanto ele como eu renegávamos as vanguardas e o ultraísmo.
Folha - Mas o sr. mantinha ainda elementos de proximidade com as vanguardas, não?
Bioy Casares - É possível. Uma vez, disseram que eu era um dos ultraístas mais conhecidos de Buenos Aires, o que me envergonha um pouco (risos).
Folha - Em 1936, o sr. e Borges fundaram a revista ``Destiempo". Gostaria que o sr. falasse um pouco sobre a revista e suas propostas.
Bioy Casares - A revista tinha um propósito muito amplo, de receber o melhor da literatura. Não era uma revista com uma tendência determinada. Foram publicados só três números. E um deles vendeu-se muito bem, esgotou-se rapidamente. Depois, descobrimos por quê. Porque era vendida num estádio de futebol, e dizia-se: `` `Destiempo', a revista para o assento" (risos).
Folha - Em suas memórias, o sr. diz que uma preocupação da revista era atentar para o valor intrínseco das obras, que muitas vezes era deixado em segundo plano pela crítica, em favor de fatores exteriores...
Bioy Casares - Sim, claro, e foi por isso que colaboraram nela escritores muito bons, como Alfonso Reyes, Fernandez Moreno, os melhores escritores daquela época. Mas, como não pagávamos as colaborações, não foram muitos os que se animaram, e não foi possível seguir com a publicação.
Folha - O sr. renega os livros que escreveu antes de ``A Invenção de Morel". Por que eles lhe desagradam tanto? Que tipo de livros eram?
Bioy Casares - São livros muito desagradáveis. Creio que ninguém os pode ler numa atitude prazenteira. Quando escrevi ``A Invenção de Morel", tentei mudar de personalidade, ser outra pessoa, de tão ruins que me pareciam os primeiros livros.
Folha - Mas o que eles tinham de tão ruim? Eram sentimentais?
Bioy Casares - Não, não creio. Eram, isso sim, confusos, mal feitos. Não acho que se pode dizer que fossem românticos, nem sentimentais, nem realistas, nem nada. Eram livros de uma pessoa jovem, que tinha lido muito e que não tinha ainda critério nem vivência para fazer algo tão pretensioso.
Folha - Gostaria que o sr. falasse um pouco sobre a realização de ``A Invenção de Morel". Como surgiu a história, como se estruturou?
Bioy Casares - Como em todas as histórias que eu faço, me veio primeiro a idéia do relato. Eu o fui construindo, contei-o a mim mesmo e depois, quando o escrevi, tentei não cometer erros. Eu não aspirava ao acerto, mas a não cometer erros. Por isso cometi o erro de escrever com frases muito curtas. Porque eu achava que nas frases longas havia mais possibilidade de me equivocar. Mas uma sucessão de frases curtas não é muito agradável. É o que se chama um estilo de ``pão cortado". Esse estilo é o estilo de ``A Invenção de Morel".
Folha - Enquanto escrevia, o sr. mostrava os rascunhos a Borges ou a Silvina Ocampo?
Bioy Casares - Não, não mostrei a ninguém. Quando o concluí, mostrei a Borges. Ele gostou e por isso escreveu o prólogo.
Folha - E como o sr. vê o fato de que só hoje, quase meio século depois de ``A Invenção de Morel", a tecnologia, com a chamada ``realidade virtual", aproxima-se do prodígio imaginado no romance?
Bioy Casares - Isso me surpreendeu muito. Encontrei pessoas que me dizem que sou como que um chefe desse movimento, mas na verdade não tenho nenhuma opinião a respeito. Não sei muito bem o que é isso de realidade virtual e não tenho maior interesse em saber.
Folha - De todo modo, parece-me que seu interesse ao escrever o livro não era tanto científico, mas lógico, e até metafísico. E o mesmo se pode dizer de seu romance seguinte, ``Plan de Evasión".
Bioy Casares - Sim, é verdade. E ``Plan de Evasión", eu imaginei como um romance que fosse publicado quase ao mesmo tempo que ``A Invenção de Morel". Mas, como sou muito lento para escrever, publiquei-o três anos depois.
Folha - Costuma-se dizer que o filme ``O Ano Passado em Marienbad", de Alain Resnais, é inspirado em ``A Invenção de Morel". O que o sr. acha do filme -e sobretudo do fato de que deixou de lado toda explicação do mistério?
Bioy Casares - Eu temia que o filme me parecesse pior do que me pareceu. Na verdade, achei o filme bastante bom, mas não me interessou demasiado. Li, com gratidão, que Alain Resnais disse que meu livro lhe havia sugerido o tema, mas não reconheço muito o livro no filme. Nunca cheguei a falar com Resnais, infelizmente.
Folha - Como o sr. concebe, desenvolve e escreve suas histórias?
Bioy Casares - Estou conversando com uma pessoa, ouvindo o que ela me diz e, de repente, sinto que ali há a possibilidade de uma história. Guardo aquilo na memória. Depois, conto esta história primeiro para mim mesmo, em seguida para uma amiga...
Folha - Sempre uma mulher?
Bioy Casares - Quase sempre. Depois disso, se me dou por satisfeito, escrevo. Até então, não escrevo nada, mas vou resolvendo mentalmente os problemas da narração. Claro que, quando começo a escrever, percebo que há outros problemas ainda não resolvidos, que me tomam mais tempo de reflexão.
Folha - O sr. diz, em suas memórias, que ainda quer escrever alguma coisa sobre Borges, para ``corrigir erros que se cometeram sobre ele". Que erros seriam esses?
Bioy Casares - Não tenho idéia. Essa frase me assombra, parece que foi dita por outra pessoa.
Folha - Mas está aqui, no seu livro ``Memorias", página 115.
Bioy Casares - Sim, não estou duvidando. É que não me lembro de havê-la escrito. Que vergonha (risos). Bem, acho que as pessoas simplificam Borges, vêem-no como uma pessoa desumanizada, que não gostava da vida. Não é verdade. Borges era uma pessoa que gostava de rir, era muito alegre e tinha também uma grande tristeza no fundo da alma, por dramas pessoais, seguramente. Não era nada inumano, Borges. Pelo contrário, era muito humano.
Folha - O sr. já disse que Borges vivia apaixonado pelas mulheres. Mas eram sempre amores platônicos ou os realizava?
Bioy Casares - Sobre essas coisas, não sei. Borges e eu não tínhamos confidências dessa ordem. Mas sei que esteve muito apaixonado, que amou mulheres e que por elas esteve desesperado. Parece que a sua vida amorosa foi muito infeliz.
Folha - Ao contrário da sua. Como o sr. resumiria as afinidades e diferenças entre o sr. e Borges?
Bioy Casares - Não sei o que dizer. Sei que ele influiu sobre mim e que eu influí sobre ele. Tivemos boas influências recíprocas. Em seus primeiros livros, ele escrevia de um modo barroco, enquanto eu predicava a simplicidade, e Borges acabou escrevendo num estilo muito simples. E a mim, ele ensinou muitíssimas coisas. Quando estivemos juntos no campo, para escrever um folheto sobre iogurte (foi nosso primeiro trabalho em parceria), falávamos de literatura, e eu ainda acreditava no surrealismo, na liberdade absoluta, e Borges me respondia que a liberdade estava limitada pela inteligência, que havia que controlar as coisas, e não deixá-las transbordar. Graças a esses conselhos, pude escrever os livros que escrevi.

Continua à pág. 5-5

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