São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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roubar até que tudo bem

MARILENE FELINTO
ROUBAR ATÉ QUE TUDO BEM

O primeiro ladrão de nossas vidas, espetacular ladrão de galinhas que deixou marcas inteiras de suas pegadas na lama do quintal, foi perseguido a foice e peixeira pelos homens da vizinhança. Antigamente, contra homens brutos, homens brutos.
O ladrão de hoje exige cálculos, rouba nos números, escandaliza a vítima e desmoraliza os planos de "moralização da economia. A diferença entre o ladrão de ontem (de apenas 30 anos atrás) e o de hoje é que aquele nos sabia analfabetos como ele, enquanto este acha que só ele sabe contar e calcular.
Em São Paulo, numa concessionária da Olivetti, o funcionário da oficina de conserto de máquinas pediu R$ 95 pelo serviço em uma máquina de escrever, cuja única peça defeituosa, e que precisava ser substituída, custava módicos R$ 10.
A solução era recolher a máquina obsoleta -afinal ninguém usava mais aquele peso cheio de teclas, ruídos e corretores à base de borrões de tinta- e dizer uns desaforos para o ladrão de casaca, que rouba com autorização (chamada concessão).
-Como é? Noventa e cinco? Um salário mínimo? Você sabe que muito pai de família trabalha um mês inteiro catando o lixo imundo da sua casa para ganhar esses mesmos cem reais que você quer roubar de mim em quinze minutos?
Mas faltavam argumentos sólidos contra a exploração declarada, disfarçada em "orçamento de revisão com garantia de três meses, encoberta em notas fiscais. Impossível comparar lixeiros com técnicos, psicólogos (a hora mais escandalosamente cara do mercado) com professores, sem cair no emaranhado de conceitos socioeconômicos que estabelecem leis e justificam a sacanagem da sociedade de classes.
Impossível argumentar sem se sentir o imbecil diplomado em que estamos nos transformando, o analfabeto em créditos e contas-correntes, em números simples, em operações aritméticas básicas.
Havia um erro claro na tabuada do técnico da concessionária Olivetti. Mas ele não tinha por que se constranger, afinal o país é um roubo só. Até hoje não esperamos sentados (ou dormindo, ou mortos) o dinheiro que nos levaram em depósitos compulsórios disso e daquilo?
Que fim deram aos homens horrorosos, os anões e assassinos do orçamento? Que fim levou o dinheiro roubado em festas nas mansões de Brasília, em viagens para as ilhas, isso e aquilo? E o dinheiro-engodo da loteria? Ao menos o dinheiro roubado do INSS está em contas bancárias dos Estados Unidos.
Vamos ver para a conta de quem ele vai quando for devolvido ao Brasil. Dinheiro todo nosso, contadinho, tirado de nós em impostos sem qualquer garantia, dinheiro jogado ao vento, para morrerem velhos e meninos nas portas dos hospitais.
Garantia de três meses! Aqui nunca sabemos o resultado das coisas, vítimas da Justiça modorrenta, do entulho de processos corroídos pelas traças, de perdões inadmissíveis como o que se concedeu ao ex-presidente Collor. Parabéns, ladrões.
Roubar? Tudo bem. Até que tudo bem. Há erros claros na tabuada do feirante, do dono do supermercado, do encanador, do industrial. Os mesmos erros da tabuada deficitária dos governos brasileiros. Mas não sabemos dizer quais são. Já se foi o tempo das máquinas de escrever e das tabuadas. A vez é das máquinas de calcular -e roubar.

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