São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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jatene abre o coração

RICARDO KOTSCHO

Jatene abre o coração

"Nunca me considerei auto-suficiente para enfrentar todos os problemas. Sempre me limitei à minha área"
Simples: todos foram até ele levando pedidos e todos saíram sem conseguir nada. "Os parlamentares representam setores da sociedade e querem levar para suas regiões benefícios, obras, investimentos", diz.
"Expliquei que não tinha recursos, não consegui atender a nenhum. Falei a verdade e todos eles saíram daqui garantindo que iam me ajudar a conseguir o dinheiro".
Maldade da imprensa Na cabeça de Jatene, esta história de rolo compressor da dupla Malan-Serra para negar recursos à área social, em nome da estabilidade da moeda, não passa de "uma colocação maldosa que circula na imprensa". Há divergências, sim, que ele considera saudáveis num regime democrático.
"Esta briga tem que ser decidida pelo Congresso Nacional. Uma vez decidida, todos têm de cumprir", diz, e dá o assunto por encerrado, confiando nas promessas dos 300 parlamentares com que falou.
Para quem ainda acha que por trás de sua disputa com o ministro do Planejamento, José Serra, estejam futuros embates eleitorais municipais, estaduais ou até mesmo a sucessão presidencial, Jatene manda avisar: não é filiado a nenhum político, não pretende se filiar e, portanto, não pode ser candidato a nada.
"A mosca azul não me picou"
Se alguém insiste no assunto, sente-se ofendido. "Essa idéia de que estou na busca de cargos é própria de quem não acredita que as pessoas possam se guiar por valores e não só por interesses menores, egoístas."
Mais: "Eu já disse mais de uma vez que as pessoas conhecem a força dos outros, não conhecem as fraquezas. Todos temos limites. Nunca me considerei auto-suficiente para enfrentar todos os problemas da vida. Sempre me limitei à minha área, não estou preparado e não tenho maior interesse em fazer outra coisa."
Por fim: "Não é ocupar cargos que dá poder. O poder se conquista pela forma como se exerce uma função na vida, com impessoalidade, sem beneficiar grupos ou partidos. Já tenho 66 anos e nunca fui picado pela mosca azul".
Provérbio árabe
Indignado com os que não acreditam na sua desambição política, Jatene recorre a um dos seus mestres e ídolos, Dante Pazzaneze (o outro é Euryclides de Jesus Zerbini, o pioneiro dos transplantes cardíacos no país), que ele chama de filósofo.
"Ele me falou uma vez: você só pode se considerar independente quando conseguir matar no seu coração a inveja e a vaidade. Se conseguir sublimar estes dois sentimentos menores, vai seguir tranquilo, nenhuma turbulência te atingirá."
Lembra de sua mãe, que ficou viúva com 28 anos e quatro filhos para criar: "Ela me ensinou o seguinte provérbio árabe, que é o meu princípio filosófico: `Escreve na areia o mal que te fizerem e grava no mármore o bem que receberes'. E eu tenho procurado fazer isso".
O que ele quer é salvar a saúde pública, sem deixar de atender seus pacientes no Incor, de olhos fixos numa meta que pode parecer quixotesca para quem não conhece Jatene: reduzir pela metade a mortalidade infantil no país ainda na sua gestão.
Depois de reduzir em 10% o número de internações hospitalares e de instalar no ministério um sofisticado serviço informatizado de controle de gastos para tapar os eternos ralos, Jatene joga todas suas fichas na Medicina preventiva, especialmente em dois programas.
São eles o Pacs (Programa de Agentes Comunitários de Saúde), criado em 1991, e o PSF (Programa de Saúde da Família), implantado no ano passado, que já começam a dar os primeiros resultados.
Situação insustentável
"Quando estou lutando por recursos para a saúde, não estou defendendo os hospitais, mas a garantia de acesso da população de baixa renda ao serviço público", diz.
"Minha obrigação como ministro é alertar o governo e a sociedade para uma situação que estava ficando insustentável", completa, com a mesma calma de quem vai comunicar o quadro clínico do paciente à família do cardíaco.
Mais uma vez, passando das dez da noite -o chefe de gabinete, Edmur Pastorelo, já anda impaciente à porta para um último despacho-, Jatene recorre aos ensinamentos do ofício de cirurgião para mostrar a relatividade dos números quando se discute a situação da saúde pública.
Treino de humildade
"Embora os riscos na cirurgia cardíaca hoje sejam baixos, entre 1% e 2% numa operação de coronárias, quando acontece um óbito, para a família do paciente o índice é de 100%."
"A idéia de que um cirurgião é infalível, um super-homem, é dos doentes que entregam a vida em suas mãos. Mas nós somos humanos, temos problemas como qualquer um. Podemos cometer erros involuntários, que devem servir para nosso aprimoramento."
"A cirurgia é um treino de humildade. É um equívoco do cirurgião se considerar um agente. Como pessoa religiosa, acredito que somos apenas instrumentos de um poder maior", vai pensando em voz alta.
Continua: "Você não precisa ser o melhor. Basta procurar fazer bem aquilo que faz, sem esperar recompensa ou castigo, simplesmente pelo prazer de fazer bem-feito, que se esgota no ato de fazer".
"Outsider da política"
Não deve ser muito difícil imaginar o ceticismo das velhas raposas da política brasileira diante dos singelos provérbios árabes e das permanentes lições de vida que acompanham a passagem deste "outsider da política" por Brasília.
Pai de dois cirurgiões e uma cardiologista, que trabalham na sua equipe do Incor, e de uma arquiteta; casado com uma nutricionista, Aurice, que deixou a profissão para cuidar dos filhos, ele vai encerrando mais uma jornada longe da família.
"O que é difícil de tolerar é essa minha atividade na política. A família não estava preparada para isso, nem eu. Eles sofrem, mas aceitam e, como me conhecem, sabem que não estou esperando nada em troca. Por isso, torcem para que dê certo".

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