São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 1995
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Por que dá sono a amizade luso-brasileira?

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Neste ano da graça de 1995, cruzamos os mares para rever nossos avós portugueses, matar saudades. Vocês sabem, saudade é uma palavra que só existe em nossa língua, que aliás estamos querendo unificar -muitos sotaques, o mesmo e querido idioma.
Mas nós, que navegamos com a cruz da saudade, acabamos emboscados na letra “s” , escorregamos e caímos no sono. Dormimos ministros, senadores, primeiro escalão, segundo escalão, o porta-voz dormiu sem dizer palavra.
Como dormimos?
Sentados, conhecendo como conhecemos esse solene sono que sempre termina com palmas, dormimos de braços cruzados, apoiados ao parapeito, dormimos de cabeça pendendo ora para a esquerda, ora para a direita.
Roncamos?
Não havia gravadores. No princípio, foi apenas um peso na cabeça. Depois pesaram as pálpebras. Fixávamos num ponto, num bigode, com olhos bem abertos, mas era como se partíssemos dalí, como se esgorregássemos num “s” de slip, navegar é preciso, name, password, go to http///www...
Sonhamos?
Mais um passo na escada e mergulhávamos na primeira camada do sonho. Bonifácio acionou os Paralamas, partiram nossas caravelas.
“A Pátria-avó se volta sem memória
Um amor sem beijo e sem resposta
Responde agora a uma nova sedução”.
Ah, que tristeza, esse fado na contramão, eu comendo fios-d’ovos, chocolates, dentistas cercam o prédio: obturação já, tratamento de canal ainda que tardio...
“And you turn back on me your conquests, your navigation
Your maltese cross on the blue”
Caravelas chegam às praias, onde tudo começou:
“Vocês querem bacalhau?"
Dormimos mulata, acordamos travesti, no seu colo, seu Manoel
“Teus Joaquins, teus açougueiros, filhos de uma mãe-avó
Os bons e os maus tratos que te dei
Sucumbem com tamancos, camisetas sob a le.
Que ouvistes a noa Europa te ditar”.
Fala o presidente?
O Presidente fala. Timor Leste?
Ai, que preguiça. Onde fica isso?
E essa Fretilin, não vai nos atropelar com cartazes, gritos, gente de barba Sim porque a esquerda é burra. Dou quatro para ela. A direita está um pouquinho melhor: leva seis. Se continuam assim, expulso a história de minhas aulas. Existe um lado, existe o outro lado. Sou um catedrático e me repugna o círculo.
O Presidente vê?
Sim, os paramentos impedem que mova a cabeça com desenvoltura. Mas ele vê. E compreende.
Acontece nas melhores famílias, sobretudo depois do almoço.
Quanta saudade, passe o peru, custam tanto a escrever e mais uma taça de vinho não faz mal.
Ele é homem do Primeiro Mundo, veste um terno da Tweed, bem-educado como um Armani. Ouve fogos de artifício nos campos de futebol, sabe que caiu a tarde de domingo no império lusitano. Até ele tem sono. Finge que não nos vê, finge que não ouve os fogos de artifício, finge que não ouve a bomba atômica de Chirac.
Para estadistas bem-educados, uma bomba atômica é como um peido no elevador. Jamais diria: “Chirac, francamente, você...”
“Um dia foste forte e generosa
Hoje tua memória não tem sul
Não é porque já não se usa navegar
Nem é por toda idade, eterna sois”
Essas solenidades não acabam nunca?
Sim, acabam. Acabam em palmas. Ótimo, não?
Atropelamos um poeta chamado Boto (descansa mais perto, ao menos aqui), dentistas com ou sem recibo, travecas invadem o Rocio, oh Manuel, oh Joaquim, devastaste os úteros nativos e agora, colonizador-colonizado, de preferência camisinha: “Mas nunca mais a nossa velha intimidade”.
“O sabor inigualável dos seus pães
Acabam sem Fernando Pessoa?
Não. Acabam com Fernando Pessoa:
Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro.
O mar é o mesmo: já ninguém o teme”
Voltamos?
Nossa nau volta ao Brasil e, sempre que uma nau volta vencida, o poeta Miguel assume o leme com a Índia perdida. Nós, o novo mundo, a energia, levamos aos avós o grande impulso. Já não se cruzam mares de tempestades, monstros e prodígios. E, depois, aquele vinho do porto... Onde falam Timor, falamos Bali, onde querem ação, somos moleza.
Empreguinho para o primo do Cabral, embaixada para o ex-presidente, um fado, batatas coradas, a Indonésia. La nave volta: como foi que viemos a encalhar nas costas de Miami?
(Os versos da canção dos Paralamas, “Navegar Impreciso”, são de Herbert Vianna).

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