São Paulo, terça-feira, 1 de agosto de 1995
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Messiaen conclui obra com canto de aves

DA REPORTAGEM LOCAL

O compositor francês Olivier Messiaen (1908-1992) dedicou a metade final de sua carreira ao estudo do canto dos pássaros. Sua derradeira composição, inacabada, intitulada ``Concerto a Quatro", incorpora uma vez mais as melodias recolhidas em vários locais, da Nova Zelândia aos arredores da casa de campo do músico, no interior da França. É uma obra alegre, forjada no espírito neoclássico.
``Concerto a Quatro" é interpretado pelo clarinetista suíço Heinz Holliger, a flautista francesa Catherine Cantin, o violoncelista russo Mstislav Rostropóvitch e a pianista francesa Yvonne Loriod, viúva do compositor e a Orquestra da Ópera da Bastilha, regida pelo maestro chinês Myung-Whun Chung.
Yvonne se incumbiu de orquestrar a segunda parte parte do primeiro movimento, Entrée, e todo o quarto e último, Rondeau.
Escrita entre 1990 e 1991, a peça se distingue do restante da produção de Messiaen por não se valer de títulos com inspiração religiosa nem de impulsos extramusicais. Revela uma escritura segura e uma instrumentação fluida, própria para a transfiguração do canto dos pássaros.
Outro diferencial está no neoclassicismo. Messiaen homenageia Mozart, Rameau e Scarlatti, mestres da lógica da leveza. A obra toda se baseia em harmônicos naturais, sobre os quais os instrumentos realizam solos líricos. Pouco a ver com o Messiaen severo e místico da década de 80.
O último movimento pode ser ouvido como a coda da obra do músico. É uma cena de sons ornitológicos europeus e neozelandeses traduzidos pelos instrumentos solistas em refrões e longas passagens reflexivas.
Essas passagens corroborariam a opinião que o compositor russo Igor Stravinski tinha sobre Messiaen: ``Não posso opinar. Não entendo de ornitologia."
Sua obra, porém, nada tem de simples. Messiaen desenvolveu desde os anos 30 um sistema modal complexo, estruturado sobre os harmônicos, os sons naturais e as escalas indianas. Os pássaros eram triturados até se tornarem matemática transcendental.
Sua peça final, curiosamente, se apega a um tom. O sacerdote das escalas ambíguas encerra a vida artística com um ensolarado e sensual lá maior.
O disco se completa com a penúltima e as duas primeiras obras sinfônicas do compositor, respectivamente ``Um Sorriso" (Un Sourire), de 1989, ``Les Offrandes Oubliés" (1930) e ``Le Tombeau Resplendissant" (1931).
As peças dos anos 30 traem uma postura metafísica e uma tendência ao contraste entre pedal e clusters rápidos, entre meditação e neurose. Já a de 1989 presta homenagem ao bicentenário da morte de Mozart. As cordas variam os modos, enquanto instrumentos de sopro citam pássaros e a percussão faz movimentos dançantes. Vai do presto ao adágio, sem interrupção.
"Apesar da fome, do frio, da incompreensão, Mozart sempre sorria", disse Messiaen sobre sua penúltima partitura. ``Sua música também sorri. Por isso me permiti, intitular minha homenagem de `Um Sorriso'."
No fim da vida, Messiaen parecia ter atingido o nirvana. Ao ouvinte contemporâneo, cumpre tentar se aproximar desse estado beatífico. Messiaen foi um dos poucos mestres do século 20 que se preocupou com ser audível.

Disco: Concert À Quatre
Regência: Myung-Whun Chung
Lançamento: Deutsche Grammophon/Polygram
Preço: R$ 20 (o CD importado, em média)

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