São Paulo, terça-feira, 1 de agosto de 1995
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Günter Grass faz réquiem do humanismo

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Às vésperas do 50º aniversário do bombardeio em Hiroshima e Nagasaki (Japão), na Segunda Guerra Mundial, nada melhor para pesar a consciência do que ler ou reler Günter Grass. A Siciliano acaba de lançar no Brasil seu último romance: ``Maus Presságios".
Basta a sinopse do livro para dar idéia da coragem moral de Grass, 67, o maior escritor alemão vivo, autor do arquifamoso ``O Tambor" (1959; editado aqui pela Nova Fronteira em 1982), que vendeu 5 milhões de exemplares no mundo e foi filmado em 1979 por Volker Schlondõrff.
A história se passa em Gdansk, atualmente na Polônia, mas quando Grass lá nasceu em 1927 a cidade pertencia à Alemanha. Pois é justamente do encontro entre um alemão e uma polonesa que a história começa a se desenrolar.
Alexander Reschke, 61, um professor de história da arte, conhece em 1989 uma restauradora de nome semelhante ao seu, Alexandra Piatkowska, 59.
É Dia de Finados; ambos são viúvos e estão no cemitério para homenagear os cônjuges mortos. Conversando, descobrem em comum o lamento pelos poloneses expatriados e alemães expulsos da cidade por motivos políticos.
Então tomam uma decisão: fundar a Sociedade Germano-Polonesa de Cemitérios, para garantir paz aos mortos de Gdansk.
A equação está armada. Aos poucos, como é característico de Grass, adquire tom de fábula -mas a lição moral não é nada edificante. A sociedade rapidamente se torna veículo de lucro fácil e entra na ciranda financeira mundial para capitalizar as cinzas das vítimas do nacionalismo.
Corretores de seguro querem sua parte do bolo, sindicatos são transformados em casas de repouso pré-morte -toda uma indústria do Além começa a funcionar e cria conflitos entre os sócios.
É um réquiem do humanismo. O livro, como todos de Grass, tem um animal como símbolo-motor: o sapo. No folclore alemão, o coaxar do sapo prenuncia calamidades.
Grass sugere nesse romance que qualquer tentativa de reconciliação e paz na Europa central, qualquer vontade de ``restauração", parece fadada ao fracasso na era do mercado globalizado. Mas, dizendo assim, pode-se pensar que se trata de um livro programático.
Não é. Eis a herança de Grass (e ele está entre os poucos escritores pós-1945 que ficarão). Seus livros não são simples alegorias, ou exposições de idéias políticas.
Eles partem disso. ``O Tambor" é a mais arguta sátira ao totalitarismo. Seu outro grande livro, ``Anos de Cão", de 1963 (Rocco, 1990), esteticamente superior a ``O Tambor" (mais anárquico na forma, adequadamente ao assunto), é o retrato mais exato das raízes socioculturais do nazismo.
Mas idéia e forma caminham juntas em Grass. Sua sacada foi tratar de assuntos gravíssimos com uma linguagem desbocada e um realismo quase naturalista.
As fábulas viram escatologia, as equações se fragmentam em cenas oníricas. Comidas, grosserias, fedores, palavrões e bebedeiras minam os discursos políticos e as declarações de boas intenções.
Claro: depois das atrocidades que presenciou, dispondo de uma língua ressequida pelo burocratês, o que mais Grass poderia fazer senão soltar o verbo e o humor?
Em ``Maus Presságios", ainda que não seja dos seus melhores livros, porque mais fraco em imagens emblemáticas, o bisturi de Grass exibe mais uma chaga da consciência humana. É o que fazem os grandes escritores.

Livro: Maus Presságios
Autor: Günter Grass
Tradução: Wladir Dupont
Preço: R$ 22,50

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