São Paulo, quinta-feira, 3 de agosto de 1995
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Sócrates

JOSTEIN GAARDER
DE VOLTA À COZINHA, OUVIU UM COMENTÁRIO MALDOSO DE SUA MÃE:

- É... de repente você passou a se interessar muito por jornais...
Ainda bem que ela não comentou mais nada sobre caixas de correio e outras coisas, nem durante o café da manhã, e nem à noite. Quando sua mãe saiu para fazer compras, Sofia correu para seu esconderijo levando o envelope que continha as páginas sobre a crença no destino.
Lá chegando, seu coração pareceu querer sair pela boca quando ela descobriu um pequeno envelope branco bem ao lado da lata com as cartas do professor de filosofia. Sofia não teve dúvidas sobre quem teria colocado aquele envelope ali.
As bordas deste envelope também estavam úmidas. E ele também tinha duas perfurações, exatamente como o envelope branco que ela havia recebido no dia anterior.
Será que o filósofo tinha estado ali? Será que ele sabia onde era o seu esconderijo secreto? Mas por que será que os envelopes estavam úmidos?
Sofia sentiu a cabeça rodar com tantas perguntas. Abriu o envelope e leu:
Querida Sofia!
Li sua carta com grande interesse, mas também com alguma preocupação. Isto porque sinto decepcioná-la quanto ao seu convite para uma visita, um café etc. Um dia nós ainda vamos nos encontrar, mas por um bom tempo ainda não vou poder aparecer na ``curva do capitão".
Devo acrescentar, também, que de agora em diante não vou mais entregar minhas cartas pessoalmente. Com o passar do tempo isto ficou arriscado. As próximas cartas serão entregues pelo meu mensageiro. Em compensação, elas serão entregues diretamente no seu esconderijo do jardim.
Caso haja necessidade, pode entrar em contato comigo. Você só precisa colocar sua carta num envelope cor-de-rosa, junto com um pedacinho de doce ou um torrão de açúcar. Quando o mensageiro encontrar uma carta com estas características, ele a trará para mim.
PS. Não acho nada agradável ter de recusar o convite de uma dama. Mas às vezes não há outra saída.
PPS. Caso você encontre uma echarpe vermelha, peço-lhe que a guarde com cuidado. Às vezes acontece de a gente trocar objetos. Principalmente na escola ou em lugares parecidos. E isto aqui é uma escola de filosofia.
Um grande abraço,
Alberto Knox
Sofia estava com quatorze anos e durante esta sua breve vida já tinha recebido algumas cartas. Por exemplo, no Natal, no aniversário e em outras datas. De uma coisa, porém, ela estava certa: esta era sem dúvida nenhuma a carta mais estranha que tinha recebido.
Não havia selo e ela não tinha sido sequer colocada na caixa de correio. A carta tinha ido parar diretamente no seu esconderijo supersecreto, bem no meio da antiga sebe. Outra coisa estranha era que o envelope estava úmido, embora o tempo naquela primavera estivesse bem seco.
Mas o mais estranho de tudo era a echarpe de seda. O professor de filosofia tinha outra aluna! Era isto! E esta outra aluna perdeu sua echarpe de seda. Isso mesmo! Mas como é que ela tinha conseguido perder sua echarpe de seda embaixo da cama de Sofia?
E este Alberto Knox... que nome estranho!
Seja como for, aquela carta tinha alimentado suas suspeitas de que havia uma relação entre o professor de filosofia e Hilde Moller Knag. Mas que até o pai de Hilde começasse a trocar os endereços, isto já era demais. Não dava para entender.
Sofia ficou um bom tempo sentada, pensando em que tipo de relação poderia existir entre Hilde e ela. Por fim, resignou-se e suspirou profundamente. O professor de filosofia havia escrito que um dia eles se encontrariam. Será que nesse dia ela também conheceria Hilde?
Olhou o verso da página e descobriu que ali havia algumas frases:
Será que existe um sentimento natural de pudor?
Mais inteligente é aquele que sabe que não sabe.
O verdadeiro conhecimento vem de dentro.
Quem sabe o que é certo acaba fazendo a coisa certa.
Sofia tinha aprendido que as frase curtas dos envelopes brancos serviam de preparação para o próximo envelope grande que ela receberia em seguida. E então lhe ocorreu o seguinte: se o ``mensageiro" ia trazer o envelope amarelo ali para o esconderijo, ela simplesmente poderia ficar esperando por ele. Ou seria ela? De qualquer forma, Sofia não largaria do pé dele, ou dela, até que ele -ou ela- lhe desse mais informações sobre o filósofo. A carta dizia ainda que o mensageiro era pequeno. Seria uma criança?
``Será que existe um sentimento natural de pudor?"
Sofia sabia que ``sentimento de pudor" era um modo antiquado de dizer inibição. Por exemplo, a inibição que uma pessoa tem de ser vista sem roupa por outras pessoas. Mas será que era natural sentir inibição por uma coisa dessa? Para ser natural, uma coisa teria de ser válida para todo mundo. Só que em muitos países do mundo ficar nu na frente dos outros era uma coisa absolutamente natural!
Assim, só podia ser a sociedade que determinava o que era permitido e o que não era. Quando sua avó era jovem, tomar sol sem a parte de cima do biquíni estava completamente fora de cogitação. Hoje, porém, muitos consideram isto uma coisa absolutamente ``natural", embora em muitos países esta prática continue sendo terminantemente proibida. Sofia coçou a cabeça. Isto era filosofia?
Então passou para a frase seguinte: ``Mais inteligente é aquele que sabe que não sabe".
Mais inteligente do que quem? Se o filósofo estava querendo dizer que aquele que tem consciência de que não sabe de tudo o que existe entre o céu e a terra é mais inteligente do que aquele que sabe pouco, mas que acha que sabe muito, então não era difícil compartilhar da mesma opinião dele. Sofia nunca tinha pensado a este respeito. Mas quanto mais pensava sobre o assunto, tanto mais claro lhe parecia que, no fundo, saber que não se sabe também é uma forma de conhecimento. De qualquer modo, não lhe ocorria nada mais estúpido do que pessoas que batem o pé em suas opiniões sobre coisas das quais não fazem a menor idéia.
Então foi a vez da frase sobre o conhecimento que vem de dentro. Mas não era verdade que todo conhecimento em algum momento vinha de fora para dentro da cabeça das pessoas? De outra parte, Sofia lembrou-se muito bem de situações nas quais sua mãe ou o professor da escola tinham tentado lhe ensinar alguma coisa para a qual ela não estava receptiva. Todas as vezes que ela havia realmente aprendido alguma coisa, isto só tinha acontecido graças a uma ajuda que partira dela mesma. Já lhe tinha ocorrido também de ela de repente simplesmente passar a compreender alguma coisa. Provavelmente era isto o que as pessoas chamavam de ``intuição".
Muito bem. Sofia achou que tinha resolvido razoavelmente bem as primeiras tarefas. Mas então foi a vez daquela afirmação estranha, que acabou arrancando um sorriso involuntário de Sofia: ``Quem sabe o que é certo acaba fazendo a coisa certa".
Por acaso isto significava que quando um assaltante assalta um banco ele não sabe que é errado o que está fazendo? Sofia não acreditava nisso. Ela estava plenamente convencida de que tanto crianças quanto adultos podiam fazer besteiras das quais viriam a se arrepender mais tarde, justamente por falta de um melhor julgamento.
Enquanto estava sentada ali, ouviu de repente o estalar de galhos secos vindos do lado da sebe que dava para a floresta. Seria o mensageiro? Sofia sentiu o coração dar um salto dentro do peito. E maior foi o seu medo quando ouviu que a pessoa que se aproximava ofegava como um animal.
No momento seguinte, um enorme cão labrador entrou no esconderijo vindo do lado da floresta. Na boca ele trazia um grande envelope amarelo, que deixou cair aos pés de Sofia. Tudo aconteceu tão depressa que Sofia nem teve tempo de reagir. Segundos depois ela estava com o envelope nas mãos e o cachorro já tinha desaparecido na floresta. Só depois que tudo tinha passado é que veio o resultado do choque: Sofia colocou as mãos no colo e chorou.
Sofia perdeu a noção de quanto tempo ficou sentada ali daquele jeito até que, por fim, conseguiu erguer novamente os olhos.
Aquele era o mensageiro! Sofia respirou aliviada. Por isso é que as bordas dos envelopes estavam sempre úmidas. Por isso, também, é que os envelopes tinhas aquelas marcas. Marcas de dentes, agora ela sabia. Como ela não tinha pensado nisso antes? Agora sim fazia sentido a orientação que o filósofo lhe dera de colocar no envelope um docinho ou um torrão de açúcar quando quisesse mandar uma carta para ele.
Às vezes seu raciocínio não era tão rápido quanto ela desejaria que fosse. De qualquer forma era muito estranho que o mensageiro fosse um cachorro treinado. Sem contar que isto colocava por terra seus planos de obrigar o mensageiro de Alberto Knox a revelar onde ele podia ser encontrado.
Sofia abriu o envelope e começou a ler.

A FILOSOFIA EM ATENAS
Querida Sofia! Quando você estiver lendo esta carta, provavelmente já terá conhecido Hermes. Caso não tenha se encontrado com ele, devo dizer que Hermes é um cachorro. Mas você não precisa ficar com medo. Ele é muito manso e, além disso, tem mais cabeça do que muita gente. Pelo menos ele não tenta parecer mais inteligente do que realmente é.
Veja também que não é por mero acaso que ele tem esse nome. Hermes era o mensageiro dos deuses na mitologia grega e também o deus dos marinheiros. Mas isto não faz muita diferença para nós, pelo menos por ora. Mais importante é o fato de que a palavra ``hermético" vem de Hermes e significa oculto, inacessível. Aliás, acho que este sentido vem bem a calhar, pois Hermes de certa forma nos mantém, a você e a mim, escondidos um do outro.
Bem, chega de apresentações para o nosso mensageiro. Ele atende por este nome e é um cachorro muito bem-comportado.
Vamos voltar à nossa filosofia. Já vencemos a primeira parte do curso. Refiro-me com isto à filosofia da natureza, que significou uma verdadeira ruptura com a visão mitológica do mundo. Vamos conhecer agora os três maiores filósofos da Antiguidade: Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses três filósofos, cada um a seu modo, marcaram profundamente a civilização européia.
Os filósofos da natureza são frequentemente chamados de pré-socráticos, pois viveram antes de Sócrates. É verdade que Demócrito morreu alguns anos depois de Sócrates, mas todo o seu pensamento está inserido no universo da filosofia natural pré-socrática. Isto porque Sócrates representa um divisor de águas não apenas do ponto de vista temporal. Nosso ponto de referência geográfico também se altera agora. É que Sócrates foi o primeiro filósofo nascido em Atenas e tanto ele quanto seus dois sucessores viveram e atuaram em Atenas. Talvez você se lembre que Anaxágoras também viveu algum tempo em Atenas, mas foi banido da cidade porque considerava o Sol uma esfera incandescente (Sócrates também não viria a ter um destino mais feliz!).
A partir da época de Sócrates, Atenas passou a constituir o centro da cultura grega. Mais importante ainda do que isto é observar que, quando passamos dos filósofos da natureza para Sócrates, verificamos também uma mudança essencial em todo o projeto filosófico.
Antes de conhecermos Sócrates, vamos falar um pouco sobre os chamados sofistas, que em sua época eram a marca registrada de Atenas.
Que se abram as cortinas, Sofia! A história do pensamento é um drama de muito atos.

O HOMEM NO CENTRO
Por volta de 450 a.C., Atenas transformou-se no centro cultural do mundo grego. A partir dessa época, a filosofia tomou um novo rumo.

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