São Paulo, sexta-feira, 4 de agosto de 1995
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Livro faz inventário da história do cinema

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Como que frisando a passagem da galáxia de Gutemberg para a de Lumière, o centenário do cinema tem sido celebrado mais por documentários, filmes e mostras do que por livros.
O crítico britânico Gilbert Adair, colaborador do ``The Sunday Times" e autor do interessante e pioneiro ``Hollywood's Vietnam", autodefinindo-se como o autêntico ``dinossauro" da era de ``Parque dos Dinossauros" (1993), acaba de lançar ``Flickers -An Illustrated Celebration of 100 Years of Cinema" (Faber and Faber, 202 págs., 14,99 libras).
Não se trata de outro volume para repousar na mesa de centro de sua sala. ``Flickers", batizado a partir da piscadela provocada pelo efeito bruxuleante da luz do projetor de filmes, merece mesmo lugar de honra na sua prateleria de livros sobre cinema.
O livro é uma sacada: homenageia a efeméride selecionando e comentando uma foto de filme por ano deste centenário.
Na introdução, Adair descarta de pronto a idéia enciclopédica de uma história geral ou de um livro sobre ``os cem maiores filmes". ``A modesta ambição", escreve Adair, ``é celebrar, e ao mesmo tempo interrogar, uma seleção assumidamente pessoal de imagens" destes cem anos, ``as mais misteriosas e duradouras imagens do primeiro (e talvez único) século do cinema", como defende mais adiante.
O volume estrutura-se assim em pares de páginas espelhadas. Na metade superior da página da direita está a foto ou reprodução de fotograma, comentada por um breve ensaio que ocupa o resto do espaço. Este formato, antes que concretizar plenamente a definição do volume por Adair, ordena o fluxo de suas reflexões sobre o desenvolvimento da arte cinematográfica. ``Flickers" não é uma história do cinema exaustiva mas sim subjetiva, logo assumidamente polêmica e parcial. Felizmente, Adair é um guia informado e elegante, do qual mais aprendemos nas discordâncias do que nas coincidências.
A seleção das imagens anuais (leia quadro) caminha no fio estreito entre o cânone e o gosto pessoal. Raras delas justificam sua escolha por critérios estritamente visuais. O exemplo extremo é o de ``La Femme de Nulle Part" (A Mulher de Lugar Algum, 1922) de Louis Delluc. O impacto de um fotograma, que exibe a melancólica imagem de uma mulher que caminha solitariamente por uma curva de estrada, levou Adair a recusar-se até hoje a assistir o clássico vanguardista de Delluc.
Muitas fotos mais ilustram do que motivam os mini-ensaios estéticos e históricos de ``Flickers". Algumas poucas escolhas erram longe, como o das fotos de três meninos em ``Los Olvidados" para discutir Buñuel ou de John Wayne seguido por cavalaria que porta a bandeira americana em ``Rio Bravo" para falar de John Ford. Outras surpreendem e vencem a resistência inicial como a do set vazio de ``Festim Diabólico" (1948) para tratar de Hitchcock ou a de ``Os Imperdoáveis" (1992) para defender a chegada do pós-pós-modernismo em Hollywood.
Quem já enfrentou o desafio de uma seleção deste tipo sabe o quão insatisfatória é mesmo para o autor a lista final -e ``Flickers" não foge à regra. Cerca de metade dos títulos parece indiscutível (já não diria o mesmo das imagens), sendo especialmente feliz a lista dedicada ao cinema mudo.
Adair lamenta explicitamente algumas omissões (``L'Atalante", ``Mensageiro do Diabo", Dovzenko, Wilder, Mankiewicz, Sirk, Kurosawa, todo o cinema latino-americano e o africano) e sapateia em cima de certas exclusões (Riefenstahl, Herzog, Rosi, Roeg, Jane Campion, ``Casablanca" e ``E O Vento Levou"). Para além das escolhas pessoais, ``Flickers" faz-se valer pela inteligência do crítico.
Adair acerta na mosca ao definir o cinema como arte cinética antes que visual, ao frisar que quase tudo foi criado nos quinze primeiros anos, ao defender que um grande filme se revela em seus primeiros cinco minutos e que muito do pior cinema tem sido aquele que amplifica o mundo. Em tempo: o Brasil não emplacou nenhuma imagem de filme mas três de seus artistas são citados honrosamente no livro -Alberto Cavalcanti, Carmen Miranda e Heitor Villa-Lobos. Pensando bem, não é pouco.

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