São Paulo, sexta-feira, 4 de agosto de 1995
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Partilhar melhor os recursos da nação

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Ao enfatizar em Lima, no Peru, que o Brasil começa a ter um programa de renda mínima, o presidente Fernando Henrique Cardoso deu um passo importante. Reconhece um princípio que foi elaborado há quase 200 anos pelo maior ideólogo da Revolução Americana e da Revolução Francesa, o autor de ``Os Direitos do Homem", Thomas Paine, segundo o qual todas as pessoas deveriam ter o direito de usufruir minimamente dos recursos de uma nação.
Num ensaio elaborado para o Diretório Francês, ``Justiça Agrária", em 1796, com base nesse pressuposto, Paine propôs que se criasse um fundo nacional que pagasse a cada pessoa acima de 50 anos uma pensão, bem como ``a cada pessoa que completasse 21 anos, uma soma de 15 libras, como compensação, em parte, pela perda de sua herança natural".
A renda mínima, por enquanto, segundo anuncia o governo, estará assegurada, na próxima Lei Orçamentária de 1996, aos idosos de 70 anos ou mais e aos deficientes físicos incapacitados para o trabalho, que pertençam a famílias carentes em que a renda ``per capita" seja inferior a R$ 25 por mês.
Trata-se da regulamentação tardia, em níveis bastante modestos, do previsto no artigo 203, inciso 5º, da Constituição de 1988. Não é ainda a aplicação do Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) aprovado no Senado e que está sendo debatido na Câmara, com o parecer favorável do relator deputado Germano Rigotto (PMDB-RS).
Há um ponto de afinidade entre o que o presidente anuncia e o PGRM, pois este prevê a sua introdução gradual, iniciando-se pelos de 60 anos ou mais no primeiro ano, e assim por diante, até que, no oitavo ano, todas as pessoas de 25 anos ou mais com renda até R$ 200 teriam direito a receber um imposto de renda negativo, de 30% a 50% da diferença entre R$ 200 e a renda da pessoa.
Estive em julho nos EUA colhendo informações sobre as diversas formas de complementação de renda lá vigentes. Há pelo menos três tipos de programas de complementação de renda, além do seguro-desemprego: a Assistência às Famílias com Filhos Dependentes; os Cupons de Alimentação; e o Crédito Fiscal por Remuneração Recebida.
O primeiro é destinado sobretudo às famílias em que não há mais a figura do pai provedor, correspondendo a uma quantia em dinheiro; o segundo corresponde a um imposto de renda negativo sob a forma de cupons de alimentação, e o terceiro, instituído desde 1975, tem por objetivo estimular que as pessoas que tenham família e trabalhem saiam da dependência dos programas de bem-estar e ganhem uma renda suficiente para ajudá-las a ultrapassar a linha oficial da pobreza.
Neste ano, 21 milhões de famílias serão beneficiárias do Crédito Fiscal por Remuneração Recebida ou ``Earned Income Tax Credit" (EITC). O governo Clinton vem tomando diversas providências no sentido de evitar possíveis desvios que têm sido detectados em relação aos objetivos do programa. Os republicanos continuam favoráveis ao programa, mas querem limitar o que consideram benefícios exagerados.
Com base na experiência do EITC, é possível desenvolver um PGRM alternativo que apresentei para fins de estudos e que contém uma forma de estímulo ao trabalho. Ainda outra possibilidade, para evitar quaisquer problemas com a demonstração de rendimentos, seria a de prover uma renda básica menor, incondicional, digamos de R$ 20 por mês, a cada residente no país com 25 anos ou mais, programa que corresponderia a um total de R$ 16,4 bilhões, cerca de 3% do PIB.
Foi exatamente um modelo próximo deste que observei funcionando no Alasca com forte apoio da população. Durante uma semana questionei moradores sobre o sistema de dividendos distribuídos anualmente, de maneira igual, para cada pessoa.
Menos de 20% eram críticos ou indiferentes ao programa. De janeiro a março deste ano, cada residente preencheu um formulário, assinado por duas testemunhas, indicando que reside no Alasca há pelo menos um ano. Em 11 de outubro próximo receberão um cheque em torno de US$ 1.000. No ano passado, o valor foi de US$ 984. Os pais recebem pelas crianças até 18 anos.
No Alasca, as pessoas efetivamente podem dizer que participam da riqueza de sua terra. A distribuição de dividendos foi possível a partir de referendum popular, realizado em 1976, que autorizou a constituição do Fundo Permanente do Alasca, do qual pelo menos 25% (50% a partir de 1980) dos royalties resultantes da exploração do petróleo seriam depositados em um fundo que passaria a ser aplicado em investimentos que produzissem renda em benefício de todos os habitantes.
A administração do fundo é feita com a maior prudência e transparência. Suas reuniões são abertas aos representantes do povo e à população. O diretor-executivo, hoje Byron Mallot, dispõe de um quadro administrativo de 27 pessoas para gerir um fundo que passou de US$ 1 bilhão, em 1980, para US$ 17 bilhões em 1995.
É claro que o Alasca, com apenas 600 mil habitantes e uma renda ``per capita" quase nove vezes maior do que a nossa, possui condições completamente diferentes das nossas. Mas lá está demonstrado o princípio de que é perfeitamente possível fazer com que todas as pessoas usufruam minimamente dos recursos de uma nação.
Para o Brasil, que se tornou o campeão mundial da desigualdade, segundo o último relatório do Banco Mundial, seria importante a enérgica tomada de decisão de garantir melhor partilha de nossa riqueza, para que possamos chegar ao século 21 como modelo de equidade e justiça.

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