São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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BLOOM CONTRA-ATACA

``Huey Long disse: `Claro que teremos fascismo aqui nos EUA, só que vamos chamá-lo de democracia'; nosso atual partido republicano, dominado pela `coalizão cristã', é um partido neofascista, na verdade"

Folha - Antes da entrevista, o senhor comentava que enfurecer seus críticos talvez fosse mesmo a sua função. ``Enfurecer" os alunos também é uma missão?
Bloom - O sagrado Ralph Waldo Emerson sempre guiou o que eu faço como professor. E ele tem uma grande sentença, que eu já citei muitas vezes: ``O que me vem dos outros não é nunca ensinamento; é só provocação". A gente escreve tentando ser uma fonte de provocação. Dou minhas aulas para provocar os alunos, neste sentido da palavra. E acho que agora aprendi a escrever da mesma maneira.
Não sei o que mais um crítico literário poderia fazer, exceto ser uma fonte de provocação. Na sala de aula, ou escrevendo, e não há diferença entre os dois: aprendi, agora, a escrever do mesmo modo que falo -vejo minha função como a de ensinar ao aluno, ou ao leitor, que ele ou ela são o verdadeiro assunto, o único assunto que importa. Os livros só têm importância se nós temos importância. E, se quisermos ter importância, só poderá ser no alto sentido emersoniano de uma individuação de nós mesmos.
E é por isto mesmo que os partidários da Escola do Ressentimento e eu nos detestamos tanto uns aos outros. Porque eles acham que a originalidade, o idiossincrático, o individual é uma forma de ofensa contra o que chamam de realidade social. O que presumivelmente quer dizer uma sociedade mais justa, mais igualitária.
Folha - Presumivelmente?
Bloom - Sim, porque na verdade não é isto o que eles têm em mente. O seu único efeito, ao menos nos Estados Unidos, foi ter alimentado esta terrível reação política, social e econômica, que conseguiu acabar de vez com o liberalismo. Eles odiavam o liberalismo e ajudaram a acabar com ele.
Porque a realidade política, agora, nos Estados Unidos, é o mais rancoroso e reacionário dos regimes. Nosso atual partido republicano, dominado pela chamada ``coalizão cristã", na verdade é um partido neofascista. E os Estados Unidos estão se tornando um país neofascista.
Huey Long já havia profetizado isto. Long foi um gênio político; um homem perigoso, acabou assassinado. (Ele aparece como ``Willie Stark"no melhor romance, ``All the King's Men", do meu falecido amigo Robert Penn Warren.) E ele disse, numa ocasião: ``Claro que teremos fascismo aqui, nos Estados Unidos. Só que vamos chamá-lo de outro nome. Vamos chamá-lo de democracia".
Nós hoje temos um Huey Long nos Estados Unidos, mas o seu nome é Newt Gingrich, o mais inteligente desses novos republicanos. E acho que ainda vai ser presidente. É muito perigoso o que está se passando por aqui.
Folha - Não é exatamente uma ironia swiftiana.
Bloom - A Escola do Ressentimento, que tanto queria politizar a crítica e politizar o ensino, e que estabeleceu a categoria do politicamente correto, inevitavelmente acabou tendo um efeito real sobre a vida política. E este efeito foi ter-nos dado uma reação neofascista.
Folha - Vamos voltar a Emerson e à individuação. Em certo momento, no livro, o senhor fala da ``consciência introspectiva" e afirma que ``sem ela, o cânone não é possível -nem nós".
Bloom - É a consciência de Hamlet. Foi Shakespeare quem criou a consciência introspectiva. Shakespeare criou Hamlet e Hamlet criou a todos nós. Todo intelectual do Ocidente, a partir de Hamlet, é Hamlet. Não há como escapar dele. Arthur Nestrovski é uma versão de Hamlet, como Harold Bloom.
Tenho certeza de que deve haver autores brasileiros, que eu desconheço, e que não fazem outra coisa senão reescrever Hamlet. Não há saída: se você é um intelectual alienado do Ocidente, o que mais você é, senão Hamlet? Como eu digo, no livro, ele é a primeira figura na literatura européia que não tem fé nem em si mesmo, nem na linguagem. Muito embora tenha um sentido poderosíssimo de identidade e uma linguagem mais poderosa do que a de qualquer outro na literatura, antes dele ou depois. Mas não tem fé nem em uma nem em outra.
Folha - Mas a ``consciência" não é outra figura antiga? Até que ponto Hamlet é mesmo uma origem?
Bloom - Hamlet é a origem do grande aforisma de Nietzsche: ``Aquilo para o que se tem palavras é algo que já está morto em nossos corações. Há sempre um certo desprezo no ato de falar". Se você é capaz de expressar alguma coisa com palavras, é porque não acredita mais nela. Isto é puro Hamlet. Não existia antes dele. E desde então ninguém escapa mais disto.
A obra arquetípica da literatura ocidental é Hamlet. O cânone ocidental é Hamlet. E todo o cânone ocidental vê-se permanentemente no dilema do príncipe Hamlet.
Hamlet -não Fausto- é o homem ocidental. Homem ou mulher, aliás, não faz diferença. Hamlet é tanto mulher quanto homem. Ele é andrógino, no mais profundo sentido.
Folha - Nós falamos antes, rapidamente, da relação entre Shakespeare e Freud. Talvez este fosse um momento para explorar o assunto um pouco mais.
Bloom - A psicanálise inteira é Shakespeare aplicado -como se fala de uma ``ciência aplicada". É esta a idéia fundamental daquele meu capítulo, que tanto indignou os críticos.
Freud é Shakespeare prosificado. Não há nada de original em Freud, quando comparado a Shakespeare. O complexo de Édipo, na verdade, é um complexo de Hamlet, ou um complexo de Shakespeare. E tudo o que alguém está fazendo, quando se submete à psicanálise -incluindo a análise lacaniana, que é a forma predominante na América Latina-, é passar por um curso de Hamlet. Que dilema mais estranho.
Folha - Dos seus ex-colegas em Yale, Paul de Man parece o único por quem o senhor ainda tem admiração.
Bloom - Paul e eu fomos amigos íntimos, mas acabamos tendo mais e mais problemas um com o outro.
Ficou muito bravo quando ``Agon" foi publicado. Paul perdeu a compostura comigo, depois da palestra em que apresentei o texto do primeiro capítulo. Ele me disse: ``É imperdoável. Você passou a palestra inteira me atacando". E eu respondi: ``Sim, é um ataque carinhoso, mas é um ataque mesmo. Porque acho que o que você está fazendo não tem nenhum sentido. Você está reduzindo toda e qualquer figura textual à ironia".
Folha - A discordância entre vocês dois diz respeito à questão da ironia?
Bloom - Para Paul, toda literatura era ironia. E toda figura, todo tropo, no fundo, era ironia. E, na verdade, para ele, a própria vida era ironia.
Ele acabou argumentando não só que a condição da linguagem literária era puramente a condição da ironia, mas insistiu que a crítica literária deveria reservar uma posição privilegiada para ela; porque, no fim das contas, todo discurso literário é uma questão de figuras -e todas as figuras podem ser reduzidas à ironia.
Minha resposta era a de que é absurdo privilegiar a ironia entre as figuras, como já é absurdo privilegiar as figuras no entendimento dos textos, ou da vida, porque isto, em si, é uma postura tropológica, uma forma de figuração.
É impossível falar sobre um tropo, é impossível falar sobre uma obra literária, é impossível sequer falar sobre uma idéia, sem assumir uma posição tropológica, e você acaba caindo na armadilha de uma ironia da ironia da ironia. Você não está escapando da ironia simplesmente por reconhecer sua existência; só está expandindo a ironia. Mas Paul recusava-se a ver as coisas deste modo.
Eu sinto falta de Paul. De maneira especial, porque, infelizmente, ele escondera suas simpatias fascistas de juventude, e elas, agora, vieram à luz.
Folha - Qual é a sua conclusão sobre o ``caso De Man" (a revelação, em 1989, de que Paul de Man escreveu para um jornal colaboracionista belga, no início da Segunda Guerra).
Bloom - Alguma coisa em Paul sempre manifestou um elemento de oportunismo. Não era uma pessoa de convicções profundas. Paul era um esteta. Como eu também; mas somos tipos muito diferentes de estetas.
Paul de Man e eu fomos amigos íntimos por 30 anos, a despeito de todas as nossas discussões. E eu sou a pessoa mais judia que eu conheço. Minha cultura é toda judaica. Aprendi a falar iídiche antes de inglês. Meu temperamento não pode ser mais iídiche.
Paul não poderia ter sido meu amigo se fosse um anti-semita. Nesses 30 anos em que tive contato com ele, certamente não era. Acho que assumiu uma fachada anti-semita porque era a moda entre os nacionalistas flamengos, aliados aos nazistas. Isto é oportunismo e não é para ser defendido, mas não faz dele um anti-semita ou um nazista. Mas é uma grande pena que tenha sido assim.
Folha - O filósofo francês Jacques Derrida fez uma defesa muito eloquente de De Man (em ``Mémoires - Pour Paul de Man").
Bloom - Minha briga com ele, que acabou destruindo nossa amizade, deu-se porque eu declarei, numa entrevista, que me parecia moralmente repugnante ver todos esses desconstrucionistas, os ``clones" de De Man e Derrida, organizando simpósios e publicando ensaios em defesa De Man. Na minha opinião, o caso é indefensável e deveria ser deixado de lado, para ser resolvido entre a alma de meu finado amigo Paul de Man e Deus.
A resposta de Derrida, num ensaio em ``Critical Inquiry", foi afirmar que esta minha posição significava uma ofensa maior contra a liberdade de expressão do que qualquer coisa que o próprio De Man havia feito. Neste ponto, eu desisti e fiz chegar aos seus ouvidos que jamais falaria de novo com ele, até o fim desta vida. E nunca mais falei.
Folha - Para terminar, eu lhe trouxe dois textos; espero que o senhor não os conheça. O senhor já leu Macedonio Fernández, o mentor de Borges?
Bloom - Nunca li. Sei quem é, mas nunca li. A primeira vez que vi seu nome, em Borges, estava certo de que era um autor inventado. O nome, em si, já é maravilhoso! Macedonio Fernández. É como se alguém se chamasse Thessaly Jones (Tessálico da Silva)!
Folha - Eu lhe trouxe duas passagens de Macedonio. A primeira diz o seguinte: ``Escrever é uma maneira de não ler. E de vingar-se por ter lido tanto".
Bloom - Schopenhauer.
Folha - Macedonio era grande leitor de Schopenhauer.
Bloom - É uma tradução quase literal de Schopenhauer.
Folha - Vamos à outra. Começa com uma frase entre aspas: `` `Tudo já foi escrito, tudo já foi dito, tudo já foi feito', eis o que Deus ouviu. E Ele ainda não criara o mundo, nem nada existia ainda..."
Bloom - Muito bloomiano! Puro Bloom. Não só Schopenhauer e Borges, mas Bloom.
Folha - Continua com uma resposta: `` `Também isso já me disseram', replicou, lá do velho e fendido Nada. E começou.
Uma romena me cantou uma melodia popular que, depois, reconheci inúmeras vezes em diferentes obras e diversos autores dos últimos 400 anos. As coisas não começam, é indiscutível. Ou pelo menos não começam no momento em que são inventadas. O mundo já foi inventado antigo"(tradução de Sueli T. Cassal).
Bloom - Muito bom. É o gnosticismo. Puro gnosticismo. Gostei muito. Este é um presente de verdade que você me deu. Estou muito agradecido.
Folha - Sou eu que lhe agradeço, pela entrevista.
No dia seguinte, Harold Bloom me liga para se despedir. Conta que acabou de escrever as últimas páginas do novo livro, ``Augúrios do Milênio". O livro termina com essa citação de Macedonio.
ARTHUR NESTROVSKI é professor no programa de pós-graduação em comunicação e semiótica e coordenador do Centro de Estudos da Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP); é tradutor de ``A Angústia da Influência``, escreveu sobre Bloom o ensaio ``Influência`` (em ``Palavras da Crítica", Imago); seu novo livro, ``Ironias da Modernidade``, será lançado neste semestre, pela Ática

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