São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Quando o crime compensa

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Carmen Moreno, carioca, 34, estréia em romance com o "diário noturno" que uma presidiária alimenta poucos dias antes de ser libertada. Além da ansiedade que precede a soltura, esses escritos trazem o relato de um passado interiorano da personagem, de sua chegada à "cidade grande" e do crime que levou sua autora à prisão.
Mas essa criminosa, chamada Duran, não é uma presidiária comum. Sua profissão: atriz. Seu delito: ... (salvemos o sabor da surpresa).
Cresceu menina invocada, personalidade forte. O que a mobiliza, desde cedo, como uma obsessão, é o gosto pela fama, é a busca da glória, uma ambição tão exacerbada que nem o cárcere saberá curar.
O teatro surge como trajeto natural, incontornável. Ímã difuso no início; depois, trampolim para o estrelato em seu mundo de província.
As aspirações que Duran nutre, porém, não cabem na cidade natal. Para realizá-las, ela deve abandonar seu habitat. Isso feito, passa a aproveitar toda e qualquer oportunidade, usando pessoas próximas e agindo de modo "politicamente incorreto".
Espécie de anjo torto, Duran repudia a domesticação, nega a simples idéia de fracasso -"vai à luta", "pé na vida", como diz a "classe teatral".
Mas, neste "Diário de Luas, o forte está menos no enredo bem-articulado e mais na sequidão do estilo cheio de surpresas de Carmen, na sua saudável rejeição ao exibicionismo estético, nas fórmulas econômicas e incisivas que utiliza.
Veja este exemplo: "O que torna esse grande amigo querido e, ao mesmo tempo, indesejável é sua absoluta tolerância. Passou por todos os testes provocados por mim em nossa relação e, até hoje, manteve-se insuportavelmente confiável".
Eis uma linguagem bastante curtida, adequada, em sua não-linearidade, ao personagem turrão e astucioso de Duran e que se mantém firme, coerente, do começo ao fim -o que não é fácil obter na criação literária.
Talvez a autora pudesse eliminar alguns poucos clichês perdidos em certos cantos do livro. "O único espelho que preciso recuperar é o dos camarins. Espelho mágico, cúmplice de todas as máscaras". Essa, por exemplo, é uma construção que a própria presidiária Duran provavelmente trataria de remendar nos seus escritos se o jogo em "Diário de Luas" fosse o da metalinguagem.
Mas não há dúvida de que tal deslize fica encoberto pelo alvissareiro potencial linguístico da autora, pela "vontade artística dominante que salta aos olhos quando Duran afirma, em outro exemplo: "Escrevendo, sou todos os personagens que meu sonho quiser tocar. Construo-os com o espírito. Em breve ganharão vida corporal e a edificação do aplauso".
Mário de Andrade dizia, sobre autores novos, que "os mais felizes, os mais `humanos', são os que estréiam com obras, já boas, mas ainda imperfeitas. Estes são os estreantes legítimos, os que prometem, os que irão ter uma ascensão normal de progresso".
Carmen Moreno parece se encaixar aí, e isso já é um grande mérito. Dela devemos esperar, com certeza, muito mais.

Texto Anterior: A OBRA; LANÇAMENTO
Próximo Texto: Esquerda e direita em tempos de burrice e de esperteza
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.