São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Novas questões para a arte

FERREIRA GULLAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Giulio Carlo Argan, nascido em Turim em 1909, estudioso da arte, historiador e crítico, deu notável contribuição ao entendimento das questões artísticas, em nossa época, tanto no plano histórico-social quanto no plano estético propriamente dito, muito embora, na sua visão, esses dois aspectos da arte jamais se dissociem. O conhecimento efetivo do vasto acervo artístico europeu, a par de uma formação teórica sólida, serviu de base para que desenvolvesse uma visão analítica da arte, original e reveladora de muitos aspectos da atividade criadora. Outra particularidade de Argan é seu interesse pela arquitetura, que lhe serve de referência para a compreensão do processo artístico em geral, como se verifica no livro ``Arte Moderna", objeto de nosso comentário.
A relação entre arquitetura, pintura e escultura, no pensamento histórico-estético de Argan, revela suas preocupações com a finalidade da atividade artística -que na arquitetura é determinante- e sua articulação com o desenvolvimento das técnicas e dos modos de produção. É permanente em sua obra -quer trate diretamente da crítica de arte ou da questão da sobrevivência da arte na sociedade de massa- a indagação acerca da finalidade da arte depois que ela perdeu as vinculações que mantinha no passado com os fatores ideológicos e técnicos da velha sociedade. Por isso, o livro ``Arte Moderna" é, simultaneamente, uma história sintética da arte moderna e o pretexto para o autor indagar e responder àquela questão fundamental.
Essa questão está na origem mesma da arte moderna que, no entender do crítico italiano, começa com a crise ocasionada pelo fim do ideal neoclássico. O encerramento do ciclo clássico e início do romântico (e moderno) teria sido provocado, principalmente, pela transformação das tecnologias e organização da produção econômica, com todas as consequências que comporta na ordem social e política. Ou seja, o nascimento da tecnologia industrial, ao precipitar a crise do artesanato e suas técnicas refinadas e individuais, provoca também uma crise nas artes plásticas, produto daquelas técnicas. Diz Argan: ``A passagem da tecnologia do artesanato, que utilizava materiais e reproduzia o processo da natureza, para a tecnologia industrial, que se funda na ciência e age sobre a natureza, transformando (e frequentemente degradando) o ambiente, é uma das principais causas da crise da arte".
Com o propósito de expor o processo que conduziu à crise e analisar suas causas e consequências, Argan começa por examinar o pensamento estético vigente no nascedouro da arte moderna -os conceitos de ``pitoresco" e ``sublime", neoclassicismo e romantismo-, traçando o caminho que vai desembocar no impressionismo. Tratava-se agora -observa ele- de ``libertar a sensação visual de qualquer experiência ou noção adquirida e de qualquer postura previamente ordenada que pudesse prejudicar sua imediaticidade".
Nesse capítulo, que ele intitula ``A Realidade e a Consciência", estuda, além dos mestres impressionistas, os neo-impressionistas e os simbolistas, sem esquecer a revolução que se opera na arquitetura com a utilização em larga escala das estruturas metálicas, cuja expressão mais notável é a Torre Eiffel.
Depois de examinar a arte da Inglaterra e Itália no século 19, Argan retoma o seu veio principal e aborda o ``modernismo", no curso do qual surgem as vanguardas artísticas, ``preocupadas não apenas em modernizar e atualizar, e sim em revolucionar radicalmente as modalidades e finalidades da arte". Esse movimento compreende os precursores da arquitetura moderna, o ``art nouveau", os ``nabis", que conduzem de um lado ao expressionismo e de outro ao fauvismo. Nesse capítulo (``Arte como Expressão"), Argan observa que, a partir daí, se esboça a oposição entre arte engajada -o expressionismo- e arte de evasão -o simbolismo-, ``que se considera alheio e superior à história".
Chama atenção o fato de que o período da arte moderna, que vai da Primeira Guerra Mundial (1914) ao início dos anos 60 -e cobre a fase mais importante da arte do século 20, encerrando-se com a perda da hegemonia européia-, apareça sob o título geral de ``A época do funcionalismo", que é um termo específico da arquitetura surgida no início do século (Le Corbusier, Gropius etc.). É que, para Argan, a problemática da arte moderna, se está diretamente ligada às transformações tecnológicas, vincula-se por isso mesmo também à problemática da própria cidade moderna: ``A cidade é um organismo produtivo, um aparelho que deve desenvolver certa força de trabalho e, portanto, precisa se libertar de tudo o que emperra ou retarda seu funcionamento".
A exigência de desenvolver a funcionalidade da arte se inclui na tendência geral da sociedade, já totalmente envolvida no ciclo econômico da produção e consumo, em realizar a máxima funcionalidade. Dentro desse contexto, segundo ele, ``os artistas querem participar na demolição das velhas hierarquias estáticas de classes e do advento de uma sociedade funcional sem classes". Como o último herdeiro do espírito criativo do trabalho artesanal, o artista tende a fornecer um modelo de trabalho criativo que se contrapõe ao trabalho repetitivo da indústria; desse modo, afirma, na sociedade funcional, o valor do indivíduo e da atividade individual. ``Ele se põe, assim, no centro mesmo da problemática do mundo moderno".
Argan observa que já Gauguin e os fauves consideravam a arte como atividade que se opõe ao trabalho alienante da indústria, mas lhe atribuíam como fundo e ambiente uma sociedade imaginária, primitiva, diferente da sociedade real. Agora trata-se de inseri-la na sociedade real, em razão do que deve-se reformular o processo genético da operação artística: a arte deixa de ser representativa para ser funcional. Essa funcionalidade -que é ao mesmo tempo expressão do marginalismo da arte e sua contestação da sociedade industrial- define-se como o propósito de modificar as condições objetivas pelas quais a operação industrial é alienante e compensar a alienação favorecendo uma recuperação de energias da função industrial. Excluídas essas duas hipóteses, só resta admitir o anacronismo da arte e a impossibilidade de sua sobrevivência na sociedade de massa. Das duas primeiras hipóteses, partem os movimentos de caráter construtivista, como o cubismo, Blaue Reiter, suprematismo e construtivismo russos, De Stijl. Da outra tese, partem a pintura metafísica, o dadaísmo, o surrealismo.
Mas o que, na Europa, era expressão do fim de uma civilização, nos EUA era descoberta, invenção, ímpeto criativo. Husserl havia diagnosticado a crise das ``ciências européias", como resultante do desenvolvimento científico que gerou ``meras ciências", que nada têm a ver com os graves problemas do homem -o sentido ou não-sentido da existência humana. A arte norte-americana, como expressão de uma sociedade sem qualquer compromisso com a tradição cultural e artística, assim como acredita que a ciência não está sujeita a qualquer limite e pensa o mesmo da criação artística.
Daí a aceitação de todo e qualquer procedimento que venha ``desmistificar" a arte para inseri-la no circuito da comunicação de massa. Em face dessa visão, que transforma o artista num ``técnico da imagem", assimilado pelo sistema, surge a reação dos artistas que se querem independentes e que, por isso, se negam a produzir qualquer coisa que possa de algum modo servir ao sistema. Como a obra de arte, por sua natureza de objeto, torna-se mercadoria, negam-se a produzir obras de arte, como se negam também a adotar as técnicas e linguagens da produção industrial. Argan observa que são os próprios artistas que preconizam a morte da arte nessa mesma sociedade capitalista que se diz disposta a integrá-la na funcionalidade econômica.
Na verdade, a crise da arte já se manifestava na Europa, nos movimentos mais radicais do começo do século e se agravara quando as poéticas da vanguarda chegaram ao esgotamento. A arte informal é a expressão da incapacidade do artista de formular conteúdos ou definir qualquer rumo para sua experiência estética. ``Para além da linguagem -diz Argan- só há a existência. E a arte, então, já não representa, não exprime, não comunica". Ou seja, ela é agora ``existência em estado bravio". Mas, se a obra que o artista produz não é linguagem, então é mero objeto, ou seja, mercadoria.
Sem ``valor estético", esse objeto só tem um valor: o do mercado, o valor de troca. Isso precipita a negação da obra enquanto objeto, deixando para o artista um único caminho: o da expressão que não cria objetos -a performance. Não obstante, as performances se realizam num espaço que também está apropriado pelo sistema, e essa é a razão por que os mais radicais afirmam que ``tudo o que o artista pode fazer hoje é refletir sobre o conceito de arte". Mas, como sublinha Argan, essa é uma atitude insustentável, já que a arte só existe enquanto fazer.
Giulio Carlo Argan conclui seu livro, admitindo não haver dúvida de que a arte já não tem função dentro do sistema social atual. Mas, reconhecendo que não há sistemas fechados e imutáveis, admite que pode o pensamento e a memória da arte atuarem como ``impulsos criativos capazes de gerar uma experiência individual recapituladora, porém não destruidora, da experiência coletiva".
``Arte Moderna" é uma obra rica de conhecimentos e reflexões sobre a arte. Seria leviano pretender dar, nestas poucas linhas, uma visão satisfatória do que ela expressa e, mais ainda, negar suas teses. Não obstante, apenas para instigar o leitor a refletir sobre algumas questões que a obra suscita, propomos, para concluir, as seguintes indagações: 1) a análise, feita por Argan, das causas que determinaram a morte da arte, ainda que coerente, não seria um tanto simplificadora do processo real? 2) Em outros campos artísticos, como o da literatura ou do teatro, mesmo o da música, as experiências da vanguarda radical foram assimiladas sem as consequências niilistas verificadas nas artes plásticas; isso não indicaria a presença de fatores específicos como determinantes da crise nesta área? 3) A tese de que um dos fatores da crise é, da parte dos artistas que se dizem independentes, rejeitarem a inserção na sociedade capitalista, não contradiz a postura real desses artistas que, como Christus ou Andy Warhol, por exemplo, tornaram-se empresários de suas performances?

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