São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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BLOOM CONTRA-ATACA

A crítica literária está morta, ou quase morta, na academia americana; para sobreviver, terá que mover-se para fora dali; a próxima geração de bons leitores e críticos virá de fora da universidade
Grande conversador, tão generoso com suas idéias quanto impiedoso com os inimigos, Harold Bloom é um dos observadores mais agudos da situação cultural e política do seu país. De sua casa, em Washington Square, ele nos ensina a ver melhor toda a comédia amarga do que outro habitante mais antigo desta mesma praça, Henry James, já descrevia como ``a cena americana".

Folha - Em seu livro, o senhor escreve que ``nós estamos destruindo todos os padrões intelectuais e estéticos nas ciências humanas e sociais, em nome da justiça social". ``Nós", aqui, significa presumivelmente ``eles", se não ``vocês".
Harold Bloom - Não sei como é o caso no Brasil. Para os países de língua inglesa, de maneira muito marcada, ``nós" significa simplesmente a academia. Nos Estados Unidos, como na Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, a situação foi tomada pela maré terrível do que eu chamo de Escola do Ressentimento.
Fundamentalmente, o que ocorreu -e parece agora impossível de ser revertido- foi uma coalizão de, entre aspas, ``feministas", ``marxistas", ``neo-historicistas", ``materialistas culturais" e teóricos de inclinação francesa -Lacan, pseudo-Lacan, pseudo-Derrida, pseudo-Foucault. Esta coalizão representa hoje cerca de 70% dos professores em meio de carreira, e mais da metade deles são cultuadores fanáticos da Escola do Ressentimento.
Não estão interessados em literatura, ou na filosofia tradicional; decididamente não têm o menor interesse por interpretações convencionais da história ou pela história das idéias. Não têm interesse algum por aquilo que eu chamo de crítica literária, que é o que o mundo sempre considerou como tal, desde Platão, Aristóteles e Longino até uns 15 anos atrás.
Folha - Mas o ressentimento é contra o quê?
Bloom - Falo de uma Escola do Ressentimento, jogando com o sentido nietzscheano da palavra, porque a meu ver seu ressentimento está dirigido, antes de mais nada, contra a própria idéia da literatura como força da imaginação.
Eles insistem que o valor estético é uma forma de mistificação burguesa: é simplesmente uma tentativa, por parte das classes dominantes, de encontrar maneiras de preservar o sistema econômico, político e social, ancorado em escritores ``homens, brancos e mortos", seja da América ou da Europa. O sistema, sem dúvida, está sendo preservado; mas parte do fascínio, ou melhor, do horror do que vem acontecendo é o fato de que essa gente de pseudo-esquerda não pode ser mais fraudulenta -porque não são, na verdade, de esquerda: são eles mesmos mistificadores burgueses, que se mistificaram ao ponto de se acreditarem revolucionários, quando, de fato, estão vivendo muito bem, por cima da carne seca.
Folha - Mas não há nada de autêntico neste movimento?
Bloom - Falo de pseudofeministas, por exemplo (e eu as conheço bem: muitas foram minhas alunas de doutorado, como aliás um bom número dos nomes mais importantes da Escola do Ressentimento inteira -hoje não falam mais comigo, nem eu com eles), porque nunca tomaram parte em qualquer manifestação a favor do aborto, nunca tentaram fazer qualquer coisa pelas mulheres pobres ou pela população carente em geral, nunca nem ao menos colaboraram com as ligas políticas pela defesa dos direitos da mulher.
Do mesmo modo, não passam de pseudomarxistas: na verdade, pertencem à alta burguesia.
Folha - Mas este movimento tem alguma força fora da universidade?
Bloom - É um movimento espantoso, que acabou provocando as piores reações. Somos hoje os Estados Unidos da Gingríchia, governados por um partido republicano sulista, de extrema direita (liderado por Newt Gingrich), e que está aí para ficar. E isto se deve, em parte, a essa gente.
A ação afirmativa (as várias políticas de compensação das minorias) começa a definhar na universidade, como na sociedade em geral, mas para eles já atingiu seus resultados. Estão aliados não só com os nacionalistas afro-americanos, que há muito tempo abandonaram qualquer critério estético -se é que jamais tiveram algum-, mas também com os assim ditos ``multiculturalistas".
E o resultado é esta insanidade, a aceitação de que o teste de valor para uma obra literária -o teste canônico, por excelência, que é definir se uma obra deve ou não ser estudada enquanto texto- resume-se à pergunta: a autora é mulher? O autor é americano-asiático ou americano ``nativo" (descendente dos índios)? Isto, em oposição a um anglo-saxônico ou um judeu -porque os judeus, de algum forma, são misturados no mesmo balaio dos anglo-saxões, como parte da assim chamada ``elite" ou ``estrutura corporativa da realidade".
Folha - Onde isto deixa a crítica literária?
Bloom - A crítica literária está morta, ou quase morta, na academia americana. Haverá de sobreviver, porque é parte da literatura e a literatura vai sobreviver, mas terá de mover-se para fora da academia.
Eu agora digo a todos os meus melhores alunos de graduação para não cursarem pós-graduação nessa área. Façam qualquer outra coisa, garantam a sobrevivência do jeito que for, mas não como professores universitários. Sintam-se livres para estudar literatura por conta própria, para ler e escrever sozinhos; porque a próxima geração de bons leitores e críticos terá de vir de fora da universidade.
Virá de outros ambientes, como as editoras, a mídia, as agências de publicidade e de relações públicas e outras esferas profissionais, como direito ou medicina. E, talvez, a longo prazo, isto seja mesmo saudável.
Folha - Talvez, mas as perdas também não serão pequenas.
Bloom - Hoje em dia, só o que se pratica na universidade americana é um teste de filiação ideológica. Se você acredita que a obra de Faulkner é, como é mesmo, mil vezes superior aos últimos romances de Toni Morrison, não terá lugar na universidade. Não será nem aceito como aluno de pós-graduação nas melhores escolas.
Só restam, agora, uns dois ou três refúgios. Harvard está lutando, mas basicamente já foi tomada pela Escola do Ressentimento. Yale permanece um bastião de resistência, com mais um ou outro lugar. Mas eu diria que, das aproximadamente 200 universidades em nosso país, 190 renderam-se incondicionalmente.
Princeton, por exemplo. O departamento oferece aos alunos uma lista dos 20 professores que ensinam literatura. Pois bem: desses, 16 -12 deles meus ex-orientandos- indicam como principal linha de pesquisa os ``estudos de gênero" (masculino/feminino). Isto quer dizer que o departamento de literatura na universidade de Princeton tornou-se, agora, na prática, um departamento de estudos de gênero!
Parece piada, mas o fato é que o estudo da literatura nos Estados Unidos transformou-se em estudos de gênero, estudos étnicos, estudos raciais. O que mais se pode dizer?
Folha - Mas o que, afinal, se lê nesses cursos?
Bloom - Nós temos hoje dezenas de milhares de alunos de graduação em literatura e milhares de pós-graduação que jamais leram Shakespeare, jamais leram Wordsworth, jamais leram Cervantes -frequentemente nem sabem de quem se trata-, mas já leram Foucault! São verdadeiras autoridades em Foucault.
Minha sentença favorita no livro é a seguinte: se multiculturalismo significasse Cervantes, quem poderia reclamar? Mas o problema é que não significa. Significa algum autor sem expressão, geralmente do sexo feminino, mas com algumas exceções para homens porto-riquenhos e chicanos. Autores da pior qualidade, cujos nomes nem vale a pena mencionar.
Folha - Dê ao menos um exemplo.
Bloom - No livro eu menciono um caso, sem dar o nome, mas trata-se do escritor chicano-americano Gary Soto. Foi este senhor o escolhido, por voto, na Universidade de Chicago, para substituir, como tema de estudo no curso de introdução à literatura, o senhor Ernest Hemingway.
Folha - O ``Cânone Ocidental" tem sido muito atacado especialmente pelas listas de ``obras canônicas" no final do livro.
Bloom - Nao consigo entender por que as listas vêm desviando a atenção do livro. A coisa mais importante nem ao menos é a polêmica (sobre o cânone e o multiculturalismo). É o que tenho a dizer sobre os 26 autores, que estão ali, implicitamente, representando o cânone.
A polêmica é secundária. Restringe-se a uma seção elegíaca no começo e outra, ainda mais breve, no fim. E tenho uma certa tendência, ao longo do texto, de me animar um pouco, fazendo piadas à moda de Jonathan Swift, castigando inimigos. De maneira geral, são piadas bem humoradas.
Folha - Talvez fosse bom explicar, de uma vez por todas, o sentido das listas.
Bloom - Há um ponto importante sobre as listas que eu devo deixar claro, especialmente para os leitores brasileiros. Como digo no livro, elas foram pensadas, muito particularmente, para leitores norte-americanos e, secundariamente, para leitores de outros países de língua inglesa.
Sei que existem alguns romancistas e poetas brasileiros de primeira grandeza, mas estão muito mal representados em tradução para o inglês. Portanto, não estão na lista.
A tradução de Guimarães Rosa, por exemplo, é um absurdo completo. Não dá para ler; é um inglês semiletrado. Até a regência verbal tem erros. O mesmo se passa com Euclides da Cunha.
Meu português, hoje em dia, já dá para ler um jornal. Com apoio de traduções, posso ler Carlos Drummond de Andrade. Mas não sou capaz de ler um português mais difícil. Sem uma tradução lúcida e inteligente, que me dê ao menos algum senso da qualidade literária da obra, como posso recomendá-la para um leitor americano?
Hoje me pergunto se não teria sido melhor deixar a lista de fora desde o início. Por outro lado, queria mostrar, especialmente na lista de autores contemporâneos, que há toda sorte de obras da moda, incluindo as politicamente corretas, que não têm lugar ali. Mas não sei mais o que pensar, meu caro. Acho que as listas causaram mais mal do que bem. Só posso repetir que não há razão alguma para a lista ser publicada no Brasil (ela será editada no volume brasileiro).
Folha - Podemos falar um pouco sobre a importância de Shakespeare no livro?
Bloom - O ``Cânone Ocidental" é, de muitas maneiras, um livro sobre Shakespeare. Sobre a sua presença avassaladora nas literaturas do nosso mundo e também sobre o fato de que Shakespeare, como eu digo em certo ponto, é o primeiro, o único, o verdadeiro autor multiculturalista. Mais do que Dante, porque Dante só é lido, basicamente, por outros poetas, não pelo leitor comum. Mais do que Dickens, mais até do que Cervantes, embora esse seja um rival considerável. Shakespeare é o nosso verdadeiro multiculturalista.
Folha - A questão do cânone, no fundo, não está ligada à poética da influência, isto é, à forma como os autores se lêem uns aos outros e assimilam e desvirtuam as obras uns dos outros através da história? Neste sentido, não se pode dizer que o senhor vem pensando sobre o cânone desde o princípio?
Bloom - Sempre fui fascinado pela questão do cânone, desde minha tese de doutorado. Só cheguei a um entendimento do processo da influência por meio do processo canônico.
Foi ficando cada vez mais claro para mim que o motivo por que um poeta como Wordsworth, o poeta canônico por excelência, jamais teve a mesma penetração na Europa que Byron e Shelley é porque Byron, que detestava Wordsworth, e achava que detestava sua poesia também, mesmo assim fica reescrevendo essa poesia.

Continua à pág. 5-6

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