São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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BLOOM CONTRA-ATACA

``A verdadeira origem da crítica literária não está em Platão, Aristóteles ou Longino, mas em Aristófanes: ele entendeu que Eurípedes manifestava um caso chocante de angústia de influência em relação a Ésquilo"
Folha - Vale dizer que Byron é, à sua maneira, mais uma versão de Wordsworth?
Bloom - Vale dizer que Wordsworth está por todas as partes em Byron, como está explicitamente por todos os lados em Shelley e Keats. Eles simplesmente não têm como escapar.
E o que acontece, como eu fui me dando conta, a partir deste caso, e olhando, então, para o resto da literatura, é que tanto a literatura como a crítica se originam na questão avassaladora da influência. As verdadeiras origens da crítica literária no Ocidente não estão em Platão e Aristóteles, nem mesmo no meu favorito, Longino, autor de ``Sobre o Sublime", mas em Aristófanes.
A crítica literária no Ocidente começa com Aristófanes, porque ele, que detestava seu contemporâneo Eurípedes, chega ao entendimento de que Eurípedes manifestava um caso chocante de angústia da influência com respeito a Ésquilo. Aristófanes adorava Ésquilo, tanto quanto desprezava Eurípedes, e, ao mostrar o combate entre os dois, subitamente ilumina todo o problema não só da formação do cânone, mas da influência em si como um processo.
Folha - Desde o princípio, então, a influência é, como diria Wallace Stevens, a sua ``primeira idéia", a idéia central?
Bloom - Você sabe, eu não gosto de Heidegger. Ele tem culpa por ter produzido autores como Foucault, Derrida e Lacan, e o movimento inteiro do pensamento francês moderno, pós-Valéry. Mas Heidegger tem um momento que me toca.
Nalgum ponto, em uma ou outra de suas apologias, ao tentar explicar o trabalho de sua vida, ele afirma que cada um de nós só é capaz de pensar uma única idéia e que, portanto, o que nos cabe é pensar esta idéia até o fim. Para Heidegger, esta idéia era a do ``Dasein" (o ser). Muito bem: eu não sou filósofo, não sou um Heidegger, nem um heideggeriano, nem muito menos, como eu gosto de dizer, um ``franco-heideggeriano". Mas eu venho tentando pensar, no curso de uma vida, ou melhor, estou condenado a pensar uma única idéia, e tentar pensá-la, sem conseguir, até o fim -e esta idéia é a da influência.
A única percepção ou ``insight" fundamental que eu jamais tive, e talvez não seja bem uma percepção, mas uma calamidade, é a de que todos os casos profundos de influência -ou ``influenza", como também gosto de dizer- são, de fato, casos de ``influenza", de contaminação, ou contágio. Toda a influência real é uma angústia de contaminação.
Folha - A contaminação não é uma figura retórica clássica?
Bloom - Não na retórica grega, mas na romana. Vem do teatro. Os romanos descreviam a prática de Sêneca como ``contaminação". Consistia em tomar emprestados heróis da tragédia grega: de Ésquilo, Sófocles e, mais que qualquer outro, Eurípedes -porque a angústia da influência de Sêneca diz respeito, acima de tudo, a ele, assim como a de Eurípedes dizia respeito a Ésquilo. Valendo-se do nome de algum herói euripidiano, Sêneca os emprega de tal forma que ele os ``contamina", transformando-os em figuras completamente diversas.
A contaminação também é, naturalmente, uma técnica de Shakespeare. Seu Marco Antônio, seu Júlio César ou Cleópatra contaminam decididamente todas as versões anteriores.
Acho que isso é algo que Borges compreendia muito bem, como se vê em sua história maravilhosa e muito engraçada, ``Pierre Menard, Autor do Quixote". Borges aqui, como de hábito, estava seguindo a trilha de Kafka, naquela parábola chocante intitulada ``A Verdade sobre Sancho Pança", que é uma versão extraordinária, pré-Menard, da mesma coisa.
Na parábola de Kafka, Sancho Pança é o verdadeiro autor do ``Quixote", porque foi ele quem sonhou Dom Quixote. Ele é o seu pesadelo, pode-se dizer. Sancho está meio enlouquecido, de tanto ler histórias do que nós, hoje, chamaríamos ficção científica. Este é um fenômeno muito antigo e é disto que trata meu livro ``O Cânone Ocidental". É uma versão mais acessível de ``A Angústia da Influência", escrita para o leitor comum.
Folha - Relações de influência são percebidas como nuances tonais: a voz de um autor que se deixa entreouvir na voz de um outro autor. É preciso conhecer um e outro muito bem para dar conta deste processo. Como o senhor trabalha questões como essa na sala de aula?
Bloom - Meus melhores alunos têm erudição suficiente para perceber o que se passa. Mas já faz algum tempo que eu deixei de dar aulas explicitamente sobre este assunto, seja em Yale ou Nova York. Tudo o que eu leciono hoje em dia é Shakespeare. Vez que outra, eu dou aulas sobre poesia contemporânea, para descansar um pouco; poesia americana, de Wallace Stevens para cá. Mas o resto do tempo é Shakespeare.
Meu interesse fundamental, agora, não é a influência, é a elaboração literária e dramática da personagem. O que, afinal, também significa um processo de contaminação. O que me interessa é o domínio exercido por Shakespeare sobre tudo o que veio antes ou depois dele, incluindo um domínio para além da literatura, sobre o que descrevemos como nossa psicologia e o que acreditamos serem as nossas formas de cognição. E que são basicamente a psicologia e a cognição shakespearianas.
Folha - Isto significa, como o senhor escreve, que a psicanálise freudiana também é uma invenção de Shakespeare?
Bloom - Um dos capítulos mais vigorosamente atacados do livro, tanto aqui como na Europa, foi o capítulo sobre Freud -onde afirmo exatamente isto. O que me espanta muito, porque, além do mais, acho que é um texto engraçado.
Desde o momento em que eu me tornei eu mesmo, com ``A Angústia da Influência", não tenho sido outra coisa senão um crítico cômico. A meu ver, o que eu tenho de melhor são as minhas piadas. Mas aparentemente ninguém percebe!
Folha - O senhor se descreve a si mesmo, em mais de um ponto, como um marxista: um groucho-marxista.
Bloom - É isto mesmo. Mas ninguém nota que eu sou um humorista. Ninguém na academia, bem entendido. Meus outros leitores notam. Tenho recebido centenas de cartas -que, naturalmente, não tenho como responder- e percebo que as pessoas notam o humor e se divertem com ele, mas nenhuma resenha, em nenhum país, jamais sequer mencionou que este livro é engraçado.
Sou incapaz de redigir um parágrafo sem contar uma piada, sem ser irônico, ou swiftiano. Mas parece que isto não é visto. É muito estranho. Acho que é porque as pessoas não compreendem que a crítica literária pode ser um gênero cômico. Nas suas origens, vem da farsa, de Aristófanes.
Espero que ``O Cânone Ocidental" seja um livro informativo, que as pessoas aprendam alguma coisa com ele, mas, antes de mais nada, é um livro cômico. É uma comédia amarga, uma comédia séria; mas toda boa comédia é séria. É humor judaico, no fundo. É groucho-marxista.
Meus dois motos pessoais são frases de Groucho Marx. A primeira é: ``Seja o que for, eu sou contra". E a outra: ``Eu jamais seria membro de um clube que me aceitasse como membro". E penso que todo leitor verdadeiro de literatura deveria aprender a dizer estas duas frases. Toda a sabedoria crítica moderna está resumida nelas.
Folha - Nenhum crítico moderno foi menos engraçado do que T.S. Eliot. Pensando nisto e também na verdadeira cruzada anti-Eliot que o senhor vem conduzindo há 40 anos, eu gostaria de saber sua opinião sobre um comentário de J. Hillis Miller (um ex-colega em Yale e atual diretor do departamento de literatura comparada na Universidade da Califórnia, em Irvine). Numa entrevista à revista ``Scripsi", de 1986, ele afirma que ``o verdadeiro precursor de Bloom, como todo mundo sabe", foi Eliot.
Bloom - J. Hillis Miller e eu já fomos bons amigos, no passado. Acho que ainda mantemos relações civilizadas. Mas aquele comentário foi, não vou dizer maldoso, porque ele não é uma pessoa maldosa, mas extremamente desagradável. E não poderia ser mais equivocado.
Toda minha vida tem sido uma guerra sem trégua contra T.S. Eliot. Nunca fui capaz de suportá-lo. Eliot foi um grande poeta. É um poeta que não me encanta, que chega até a me irritar; mas tenho Eliot inteiro na memória, porque não há como evitá-lo. É uma mistura estranha da música de Tennyson com a música de Whitman. E Eliot é um poeta de uma musicalidade impressionante, um poeta evocativo, que toma conta dos nosso ouvidos.
Era mesmo um grande poeta, mas um lastimável crítico literário. E, ainda pior, mal-intencionado como crítico cultural. E eu o detesto, seja como crítico literário, porque está sempre errado, seja como crítico cultural, porque é um fascista. Na verdade, protofascista, fascista antes do fascismo. Mas um fascista do começo ao fim.
Eliot idealizava toda a questão da influência literária, como seria de se esperar de um fascista. Porque os fascistas sempre idealizam as coisas, em sua própria e estranha maneira neo-hegeliana. E Eliot era uma espécie de neo-hegeliano, como seu professor F.H. Bradley. Hillis não poderia estar mais equivocado.
Folha - Seria legítimo pensar nas seções sobre Dante em seu livro como uma forma de lutar contra Eliot no seu próprio terreno?
Bloom - Ah, sim. O alvo mais explícito é meu querido amigo John Freccero e outros nomes ligados a ele, como seu antigo professor Eric Auerbach e seu outro professor Charles Singleton. Mas eu estava pensando, também, o tempo inteiro, embora não creia que tenha me dignado mencioná-lo, naquele ensaio muito influente de Eliot sobre Dante (``Dante``, 1929) e no uso que Eliot faz de Dante em geral.
Para Eliot, Dante é o grande poeta católico, o grande poeta cristão -melhor dizendo, o grande poeta anglo-católico! Enquanto que para mim, se, por um lado, o vocabulário de Dante naturalmente é o da cristandade augustiniana ou romana, por outro, ele é o mais autocentrado, audacioso, orgulhoso e justificadamente vaidoso dos poetas, o mais esmagador de todos os criadores de mitos na história da literatura ocidental. E teria sido considerado um herege absoluto, se a Igreja não tivesse sabiamente decidido que, uma vez que este poema é de longe o que há de melhor em toda a língua italiana -a língua, afinal, da cristandade católica romana-, o melhor seria, não lutar contra ele, mas incorporá-lo.
Mas minha ênfase maior, no livro, é sobre o fato de que Beatriz, ``a Abençoada`` (associada à Virgem na tradição de comentários ao poema), não é outra coisa senão uma mitologia dantesca. O que interessa é ver Dante insistindo que ela é crucial não só para a sua salvação pessoal -que é onde reside toda a carga da ``Divina Comédia"-, mas para a salvação do mundo inteiro. Não é exatamente a versão oficial da cristandade romana...
Folha - Mas o senhor não está sozinho, também, nesta interpretação.
Bloom - Eu tenho um precursor nesta questão, um dos quatro ou cinco críticos que contam, neste século: Ernst Robert Curtius. Absurdamente pouco reconhecido, hoje em dia; mas a meu ver mil vezes preferível a Auerbach, como crítico de literatura. ``Mímesis" (de Auerbach) é um dos livros mais superestimados da crítica no século 20. E não seria demais dizer que o meu livro é uma espécie de anti-``Mímesis", anti-Auerbach e anti-Eliot.

Continua à pág. 5-7

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