São Paulo, sexta-feira, 11 de agosto de 1995
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Professor Florestan

PAUL SINGER

O passamento de Florestan Fernandes abre enorme claro em nossa vida política, acadêmica e cultural. Florestan foi antes de mais nada um dos mais destacados membros da geração que construiu a moderna ciência social brasileira. De origem humilde, Florestan foi atraído às lides universitárias graças à consciência política ganha mediante ativa militância política, em que se engajou desde tenra idade.
Homem de esquerda desde muito cedo, Florestan Fernandes tornou-se aluno da recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e, consequentemente, discípulo dos mestres europeus trazidos a São Paulo para estabelecer os fundamentos do ensino e da pesquisa em ciências humanas. E desde cedo se destacou pela inteligência, dedicação e capacidade.
Conheci Florestan Fernandes no começo dos anos 60, quando já se tornara o titular de uma das duas cátedras de sociologia da USP, cercado por uma plêiade de jovens e brilhantes assistentes, como Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, entre muitos outros.
Deve-se em grande parte a ele o ensino de ciências sociais mediante a leitura cuidadosa e aprofundada dos grandes clássicos: Marx, Durkheim e Weber, em lugar do uso de manuais introdutórios ou, pior ainda, das ``apostilas" de aulas expositivas.
Apesar de marxista, Florestan era acima de tudo professor e, por isso, fazia questão de transmitir a contribuição dos outros clássicos, sem estabelecer qualquer ordenação valorativa.
Como nunca fui aluno dele, tomei conhecimento desse método através do contato com seus assistentes e, depois, o adotei no ensino de economia, sendo hoje praticado nas melhores universidades brasileiras. Essa é uma das dívidas que tenho para com Florestan Fernandes, além de outras no campo acadêmico e político.
Não teria sentido tentar resumir nestas linhas, ainda atordoado pela perda do amigo, mestre e companheiro, a sua obra. Mas é impossível deixar de referir o seu papel essencial na denúncia e combate ao racismo, através de uma de suas obras capitais, ``A Integração do Negro à Sociedade de Classes".
Através de suas pesquisas próprias e de seus assistentes, Florestan rasgou o véu de hipocrisia que sempre cobriu o racismo no Brasil e ajudou dessa forma o afro-brasileiro a lutar pelo pleno reconhecimento de seus direitos. Outro campo em que Florestan se destacou foi o da luta pela educação pública, universal e gratuita.
O golpe militar de 1964 e os expurgos da universidade que ele acarretou encontraram em Florestan Fernandes um denodado opositor. Até então sua militância tinha tido por campo a universidade e, mais especificamente, a sociologia. Mas a derrubada da democracia fê-lo voltar aos tempos de juventude, engajando-se de forma total e radical à luta não só contra a ditadura, como também pelo socialismo.
Florestan Fernandes tornou-se o guru de uma ampla juventude, ansiosa por construir no Brasil uma sociedade mais justa e mais fraterna. Assim, depois que a anistia abriu a todos nós, ``aposentados pelo AI-5", o caminho de volta à universidade, Florestan (para a surpresa de muitos) optou pela militância política e partidária.
Em 1986 foi eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, tendo tido participação destacada na Assembléia Constituinte, particularmente no capítulo dedicado à educação. Reeleito em 1990, continuou sua profícua atividade parlamentar e dedicou grandes esforços à elaboração de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Sua precária saúde impediu-o de se recandidatar em 1994.
Dentro da esquerda intelectual brasileira Florestan Fernandes ocupava um lugar próprio. Sociólogo de mente aberta, recusava-se a aceitar, no entanto, a atualização do marxismo, mantendo-se fiel às suas posturas básicas, por mais que parecessem extemporâneas.
Em sua coluna semanal na Folha submetia nosso cotidiano à análise crítica, sempre do ponto de vista dos ``subalternos", que nunca cansava de convocar à rebeldia e ao revolucionamento do status quo. Sua firmeza e seu otimismo inabalável nos farão muita falta. Sua obra escrita e o seu exemplo nos iluminarão por muito tempo.

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