São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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be-a-bá da sobrevivência na selva

CRISTINA ZAHAR

São 7h20 de um sábado ensolarado. Ao pé da serra da Cantareira, município de Mairiporã (35 km ao norte de São Paulo), o grupo se prepara para a primeira tarefa: conferir o material da mochila. Há facas, facão, caixa de primeiros-socorros, material para escalada, ferramentas, cordas, sinalizador, apostila, material de higiene pessoal, equipamento de pesca, repelente e lona.
Antes de iniciar a caminhada de 1,5 km rumo ao pico do Olho d'Água, os 24 aventureiros por um dia ouvem as orientações dos dois instrutores. Quando saírem da mata, terão aprendido a se orientar, abrir picadas, montar acampamento, purificar água, achar comida, subir e descer morros, identificar animais peçonhentos e até socorrer feridos.
Se tiverem sorte, nunca precisarão colocar em prática esses conhecimentos. Os participantes querem tornar-se comissários de bordo.
Divididos em dois grupos de 12, os futuros comissários seguem em fila rumo ao pico. À frente, está a pessoa que vai abrir a picada. Em segundo, o que orienta o grupo e, em terceiro, o líder. "É ele o responsável pelo rumo e pela localização de alimento e água", diz João Roberto Brunelli, 41, bombeiro e um dos instrutores.
A escalada dura 20 minutos. No topo, as equipes se reúnem para discutir os problemas da subida. Já tem gente ofegante, transpirando ou reclamando de cansaço. É o começo.
Com idades entre 18 e 23 anos, eles são alunos da EWM, escola que forma 153 comissários por ano. O curso dura entre cinco e seis meses, tem aulas teóricas e treinamentos obrigatórios: de combate a incêndio, sobrevivência no mar e na selva. O DAC (Departamento de Aviação Civil) exige permanência mínima de nove horas na mata.

Água de bambu
Após uma pequena pausa, os alunos voltam a caminhar, desta vez rumo à mata fechada, de onde só sairão no final da tarde. Cada líder recebe uma bússola com um azimute (direção) a seguir. No caso, 230 graus. Brunelli e seu colega, o também bombeiro Ulisses Barros Campos, 35, ensinam que os líderes têm que se posicionar em relação ao norte magnético da bússola. "Ou prosseguir sempre de costas para o sol", alerta Brunelli.
Os grupos iniciam a descida do morro pela mata. Caminham 30 minutos, com algumas paradas para correção de rota e alguns escorregões devido à lama ou às folhas. Aproveitam para recolher bambu a fim de obter água. É preciso abrir o bambu, que deve ser grosso, e verificar se não há larvas. Essa água é purificada com cloro ou iodo.
Brunelli julga que é hora de dar uma paradinha. Ao observar que há vários buracos de tatu na mata, ele explica ao grupo como capturar um e transformá-lo em um apetitoso (ou nem tanto) churrasco. "De dia, o tatu sai para caçar. Quando volta para a toca, à tarde, é preciso bloquear o buraco com estacas. Depois, é só puxá-lo para trás a fim de que finque as garras em alguma coisa e empurrá-lo para frente. Assim, ele se solta e vocês podem pegá-lo."
A próxima tarefa é preparar o acampamento. O grupo recolhe folhas, cipós e galhos para montar a barraca e o tapiri (abrigo feito a partir dos recursos da natureza). Também é orientado a fazer a latrina e a juntar madeira para a fogueira. Como não há tempo para esperar os tatus voltarem, os instrutores levam galinhas para alimentar a tropa.

Caça à galinha
Já é quase meio-dia. Água, só depois do almoço, às 14h. Quando as duas galinhas são soltas na mata, um de cada grupo sai correndo atrás da penosa. Liliane Gonçalves, 18, ganha de Carlo Agustoni, 22, e agarra a mais rechonchuda. É aplaudida pelas lulus da excursão.
Como parte do treinamento, os dois devem matá-las, depená-las, tirar a pele e prepará-las para o cozimento. Tempero mesmo só sal. Diante da cara de nojo de alguns, Ulisses dispara: "Vai logo, gente. Chiclete de frango não é tão ruim assim. Além do mais, é tudo o que vocês vão comer até o fim do dia."
Depois do lauto almoço é hora de desmontar o acampamento. Mulheres guardam os equipamentos, homens levam as cordas para preparar a descida, com os instrutores.

Liderança
Brunelli e Ulisses dizem que, para se tornar um bom comissário, é preciso manter a liderança mesmo em situações difíceis. "Sempre vai ter algum passageiro disposto a ajudar. O comissário pode aceitar a ajuda, mas tem que sempre estar no controle", diz Ulisses. Para Carlos André Aimi, 37, comissário e instrutor da Varig, não é bem assim. "O líder de fato surge na mata. O comissário tem que possuir meios de auxiliar uma outra liderança que não a sua." Ele acha que esse tipo de curso cumpre as determinações do DAC de dar aos alunos noções básicas de como sobreviver na selva. "Não quer dizer que você saia especialista em selva."
O teste está quase no fim. Para descer o barranco de dez metros de altura, os alunos só têm uma opção: a corda. Há quatro técnicas: rappel (passa-se a corda sobre o ombro esquerdo e depois pelo meio das pernas), falsa baiana (a pessoa segura uma corda com as mãos e se equilibra em outra), preguiça (avança-se imitando um bicho-preguiça) e crawl (a pessoa apóia uma perna na corda e vai engatinhando sobre ela).
Primeiro descem os meninos pela técnica rappel, não-aconselhada para mulheres. Mas há quem enfrente o desafio, como a gaúcha Sheine Rizzi, 21, e a mineira Liliane.
Os meninos descem pelo rappel e sobem pela falsa baiana. As meninas apenas descem pela falsa baiana. Todos usam cinto de segurança.
Às 17h30, é hora de voltar.
Mario Cesar dos Santos, 43, comissário da Transbrasil e examinador do DAC, conta que certa vez realizou um treinamento de seis dias com um grupo. "Tinha um cara que detestava frutos do mar. Ao final do terceiro dia, ele comeu um siri vivo." Cesar diz que, em caso de necessidade, é normal as pessoas comerem cobras e lagartos. "São ótimas fontes de alimento. O lagarto tem a carne branca, como a do frango. O único cuidado com a cobra é não esmagar a cabeça, para evitar que o veneno se espalhe." Urgh!
C.Z.

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