São Paulo, terça-feira, 15 de agosto de 1995
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Novo "Anel" divide público de Wagner

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A BAYREUTH

Refrescante, abjeta. O público se partiu em dois na última quarta-feira, na primeira noite de ``O Anel dos nibelungos", de Richard Wagner (1813-1883), naquele que é tido como o momento culminante do Festival de Bayreuth.
A platéia de 2,7 mil pessoas vaiou o diretor cênico da montagem, o austríaco Alfred Kirchner, e a figurinista e cenógrafa, a alemã Rosalie. Maestro e os cantores foram poupados.
O norte-americano James Levine se saiu bem na sessão de aplausos. O tenor Siegfried Jerusalem (Loge) e o barítono John Tomlinson (Wotan) receberam ovações.
``O Anel dos Nibelungos" forma uma maratona de quatro óperas à maneira de um festival de teatro da Grécia clássica. Wagner trabalhou por 24 anos na obra. Em agosto de 1876, estreou-a com seu seu teatro, Festspielhaus, construído às expensas do rei Ludwig 2º da Baviera.
Pela primeira vez na história, um dramaturgo tinha um teatro para exclusiva exibição de peças de sua autoria.
Wagner quis mais: sintetizar Beethoven e Shakespeare e realizar sozinho o libreto e a música. Inventou também uma dramaturgia à base da aliteração e da melodia infinita.
O artista desejava criar uma arte revolucionária, contra o capital e a propriedade. Sua tetralogia aborda a destruição dos deuses devido à cobiça. Queria que os ingressos fossem gatuitos, mas os custos de produção o afastaram da utopia. Hoje uma entrada custa US$ 200, para quem conseguir comprá-la.
Idealismo parece não existir mais em Bayreuth. Bem diferente era o clima da estréia do ``Anel", sobre o qual Nietzsche, um dos espectadores, comentou: ``Completou-se a primeira circunavegação pela obra de arte total".
A circunavegação começou anteontem pelo planeta fashion. Rosalie tornou figurinos e cenários profundos como um desfile da Phytoervas. O viking Wotan lembra um clubber com sua fantasia azul acetinada. Os Nibelungos são idênticos às tartarugas ninjas; têm casco e capacete. Isso para não falar nas três garotas do Reno, equipadas com roupa espacial estilo ``Os Jetsons". Kirchner se rendeu à denotação. O resultado é escrachado. Os cantores se espreguiçam no palco como numa praia.
Kirchner e Rosalie abalroam a obra com a ausência de sentimentos típica do fim do século. Mas revelam um aspecto pouco notado na dramaturgia wagneriana, o da presença estática dos personagens.
Não há ação dramática convencional, em que os atores se movimentam e atuam. Estes fazem aparições que se justificam pela materialização de um mito. Assim, um cantor não precisa atuar no sentido teatral; deve, sim, cantar bem, usando gestos estereotipados. Os diálogos são pro forma.
Quem vai a Bayreuth esperando a obra de arte total se decepciona. Wagner cria ação primária. A palavra final é dada pela música, motor da lógica dos conflitos.
Levine sabe tirar proveito do fato. Ralenta os tempos até não poder. Leva 20 horas para dar cabo da obra. O habitual é 16 horas.
Os músicos dizem que é impossível ser fiel ao pulso da partitura no fosso da orquestra da Festspielhaus. O som dos instrumentos se projeta sobre o público e só então rebate no fundo da sala e reverbera sobre os cantores. A defasagem de tempo se explicita na melodia infinita -de fato, um truque para evitar a marcação do ritmo.
A Festspielhaus escapou do bombardeio americano na Segunda Guerra (dizem que por intercessão de um general que passara a lua-de-mel em Bayreuth a ver ``O Anel"), mas não consegue hoje se safar das açambarcagens modernizadoras.
Até a eternidade tem uma tarifa. Wagner paga por tê-la cobiçado mais do que ao dinheiro.

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