São Paulo, terça-feira, 15 de agosto de 1995
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Telecomunicações: do anátema ao debate

MILTON TEMER

Segundo semestre. Foi dada a largada para uma batalha fundamental na disputa pelos caminhos por onde se desenvolverá a questão democrática a médio e longo prazo em nosso país. É a batalha que vai definir os contornos da regulamentação do sistema de telecomunicações a partir da aprovação, antes do recesso parlamentar, da quebra do monopólio de desenvolvimento do setor por meio de empresa controlada pelo Estado.
Mais do que uma questão de eficiência administrativa, o que está em jogo é a essência das definições de poder no país. A legislação resultante desse confronto de projetos -o que privilegia a privatização ``tout court" contra os que defendem uma rigorosa regulamentação, com áreas definidas de controle social sobre as políticas públicas- cuidará da exploração da ferramenta mais importante da história humana: a integração de comunicação e informática.
É de se desejar, portanto, que não se reproduza nessa fase de legislação ordinária o lamentável cenário do primeiro semestre, em que a quebra do monopólio de empresa estatal no setor se deu sem que a maioria dos parlamentares soubesse sobre o que deliberava.
Já não é segredo para ninguém -principalmente depois de divulgadas as tenebrosas transações de cargos por indicação política nas teles- que ``argumentos técnicos" estavam em jogo naquele momento em que se mudava o desenho da ordem econômica constitucional: ``Me dá o cargo que eu lhe dou o voto". Isso não pode prevalecer.
Assim, há que se introduzir um dado novo nesse processo de deliberações: a participação ativa da sociedade civil organizada. A cidadania (aquela coisa ``incômoda") precisa encontrar espaços para o debate público sobre esse terreno essencial da vida contemporânea.
Um debate público capaz de abrigar o conhecimento técnico qualificado e a pluralidade de opiniões sobre a questão, onde se abra espaços para -além do ``lobby" privado hegemônico do primeiro tempo- os quadros que construíram o sistema Telebrás, conhecedores da realidade do setor no Brasil; os cientistas que, com parcas verbas, conseguiram colocar o nosso país em posição de destaque em produção de tecnologia própria; os pesquisadores que, nos centros universitários, estudam tendências mundiais de reorganização do setor.
Para não falar, é claro, do governo e da opinião política divergente -nos partidos, nos sindicatos ligados à área etc. Não podemos nos limitar à divulgação quase monocórdia dos discursos e argumentos dessa coalizão conservadora que conseguiu condições objetivas de operar na base do rolo compressor. Mas há razões para a falta de transparência encontrada até aqui.
Diferentemente do petróleo, o setor público de telecomunicações não foi produto de jornadas heróicas nas lutas populares. Nasceu no espírito pragmático dos militares conduzidos pelo conceito de ``Brasil potência" diante do caos antes existente, em função da inapetência dos capitais privados -até então donos absolutos do setor- em pensar o desenvolvimento da área dentro de algum parâmetro maior de desenvolvimento nacional.
Foi fácil então, para os grupos econômicos integrantes do ``lobby" privado do IBDT, que disputam o controle das telecomunicações no Brasil, criarem o senso comum da ``quebra de monopólio como único caminho de entrada de investimentos para fornecimento de telefones a todos os lares".
Até ex-guerrilheiros transformados em políticos entraram nessa. E não adiantou encaminhar, tanto na comissão especial quanto na tribuna do plenário, o conjunto de provas mostrando as falsidades nos dois principais argumentos: falta de recursos e ineficiência do setor estatal. Nem quando se lembrava que os demais processos de privatização latino-americanos nada mais foram do que verdadeiras desnacionalizações, já que apenas se substituiu controle estatal nacional por controle de empresas estatais do Primeiro Mundo nas teles locais.
Aliás, é bom dizer um pouco desses grupos ``patrioticamente modernos", hegemônicos na venda do novo senso comum. Quase todos têm o mesmo perfil: um grande banco, uma grande empreiteira, um dos grupos que ``oligopolizam" os meios de comunicação de massas, articulados por megaempresas estrangeiras, privadas ou estatais. Mais que eficientes e potentes para a criação do anátema (quem não está de acordo é burro) que substitui o debate...
O governo, ancorado na confluência de poderosos interesses privados, pratica o fisiologismo de sempre. O loteamento das teles estaduais, em total desatenção com a opinião técnica e a necessidade de profissionalização dessas empresas, é um flagrante do delito.
Alimenta a pequena política e renova o atraso secular do ``patrimonialismo". Orientado pelo pragmatismo de curto prazo, ameaça privatizar tudo somente para ``fazer caixa" e garantir, no cassino financeiro, a estabilidade da moeda.
A irresponsabilidade estratégica e o fundamentalismo mercantil se sustentam em uma combinação de mitos ilusórios, com a euforia gerada pela fartura de oportunidades de ``negócios". Os escândalos virão depois.
É verdade que o setor das telecomunicações, sob o impacto das novas tecnologias, passa por mudanças no seu formato institucional em quase todos os países do mundo. Mas não há nenhum determinismo tecnológico apontando para um único padrão institucional.
Ao contrário, há uma variedade imensa de alternativas. As políticas sérias são exatamente aquelas que procuram aproveitar as potencialidades do patrimônio preexistente em processos coordenados de transição. São as políticas de países desenvolvidos.
Com os quais, nesse particular, o Brasil tem identidade. Tem história, um sistema montado, escala para se autofinanciar ou obter créditos para o ajuste tecnológico, quadros de alto nível, experiência em pesquisa de tecnologia. Poderia, se tivesse política para tanto, participar do processo mundial de reordenamento do setor em uma posição que não fosse a de mero objeto passivo.
Se tudo continuar, como no primeiro semestre, na bitola estreita do anátema, estaremos condenados ao pior dos mundos. Prevalecerá o caminho do México e da Argentina: elitização dos serviços, aumento brutal de tarifas, ausência de investimentos em pesquisa e na ampliação da rede, além da perda do controle nacional sobre o sistema. Exatamente o que precisamos evitar, pois o Brasil não comporta nem merece o padrão Menem-Salinas de modernidade.

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