São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 1995
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``Fui condenado por um crime impossível"

Leia a íntegra do pedido de demissão de José Milton Dallari:

Brasília, 16 de agosto de 1995
Excelentíssimo senhor ministro de Estado da Fazenda doutor Pedro Sampaio Malan
Em novembro de 1993, quando convidado para ocupar função governamental, somente aceitei o convite diante da garantia de que a lei (artigo 117, inciso 10, do Estatuto dos Servidores) expressamente me permitia manter a condição de acionista ou cotista de minhas empresas. Jamais teria aceitado o cargo em comissão, eminentemente transitório, se tivesse que me desligar totalmente de minhas empresas.
Cumprindo a lei, afastei-me da gerência da empresa Decisão e, por uma questão de coerência, convencionei com meus sócios que esta empresa não aceitaria nenhum novo cliente enquanto eu estivesse no governo. Isso foi feito; todos os atuais clientes dessa empresa já o eram antes de eu ocupar cargo governamental.
Entretanto, fui acusado, genericamente, de ter me valido do cargo para fornecer informações e defender interesses de clientes da empresa de cuja direção me afastei. Não há uma única acusação específica; não se apontou uma única informação privilegiada que pudesse ter sido oferecida; não se apontou uma única empresa que tivesse sido favorecida.
Apresentei os comprovantes de que efetivamente me afastei da direção da empresa Decisão; submeti-me voluntariamente a exame pericial destinado a comprovar que não pratiquei qualquer ato de gestão dessa empresa, enquanto no governo. Entretanto, não é possível contestar acusações vagas e imprecisas.
Pretendi permanecer no governo para poder defender-me, respondendo a toda e qualquer acusação concreta e específica que eventualmente viesse a ser apresentada.
Agora vejo que eu estava equivocado: no campo funcional não haverá nenhuma acusação concreta e específica da qual eu possa me defender, pela simples razão de que eu já fui antecipadamente considerado culpado, só por ser suspeito, inobstante a inverossimilhança da tendenciosa insinuação genérica e abstrata.
Meus detratores desconhecem o que significa ``acompanhamento econômico" e ignoraram que essa é uma função eminentemente de coordenação, de discussão, de negociação, de canal de informações entre o setor privado e o governo, envolvendo sempre a participação efetiva de uma pluralidade de agentes econômicos e setores governamentais.
Nesse tipo de atividade não há tráfico de influência nem informação privilegiada, pois nada é decidido isoladamente, tudo se discute abertamente e toda orientação governamental é previamente anunciada antes de ser posta em prática, em respeito ao princípio da previsibilidade da ação estatal.
Fui condenado, portanto, por um crime impossível.
Diante disso, consciente de que minha permanência no governo não mais tem sentido e constatando que permanecer somente acarreta um enorme constrangimento político, vejo que só me resta sair. Peço, pois, minha exoneração do cargo de secretário de Acompanhamento Econômico.
Saio como entrei: pela porta da frente. Estou absolutamente seguro de que cumpri o meu dever, com lealdade e correção, defendendo sempre e unicamente o interesse público. Saio, portanto, com a consciência tranquila.
Agradeço à Vossa Excelência e ao presidente Fernando Henrique Cardoso pela confiança que em mim depositaram e pelo apoio que sempre me deram para que eu pudesse desempenhar minhas funções.
Como cidadão comum aguardei a conclusão das investigações da Receita Federal para, no momento oportuno, apresentar eventual defesa na via administrativa ou judicial, caso alguma acusação concreta e específica venha a ser feita. No espaço político nada mais tenho a fazer.
Deixo algumas questões em aberto, para reflexão da sociedade. Em que medida o governo deve ou não deve contar com o concurso de profissionais oriundos da iniciativa privada? Quem não for funcionário de carreira, sendo oriundo da iniciativa privada e devendo a ela retornar, será sempre suspeito? O monopólio do exercício das funções governamentais pela burocracia é ou não uma garantia de moralidade? Quando a oposição, no exercício de sua função, levantar alguma suspeita, o titular de cargo governamental deve ser afastado? Quais os limites éticos e qual a responsabilidade dos meios de comunicação e dos membros da oposição?
Se minha saída levar a um exame sério e aprofundado dessas questões, creio que terei prestado mais um serviço ao meu país.
Reitero, à Vossa Excelência, o testemunho de elevado apreço e consideração.
Atenciosamente
José Milton Dallari Soares

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