São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 1995
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Leitosos e carnosos

OTAVIO FRIAS FILHO

Ficou todo mundo estarrecido com a fraqueza de FHC no episódio do Banco Econômico. Ninguém entende como um presidente que governa com o vento a favor, paparicado pela mídia, adorado pelas ``elites" e apoiado, além disso, pelo povão, obedece de tal maneira a um baronete de província como ACM.
É que em FHC predomina o desejo de agradar, trata-se de um presidente acorrentado não à gratidão pelo imerecido, própria de um Sarney, mas a uma espécie de débito psicológico que não se resgata. Ao contrário de Jânio e Collor, a população nunca amou nem odiou FHC, que foi aceito junto com o embrulho da moeda estável.
Tanto quanto tiveram de aceitá-lo os próprios políticos, como ACM, e nessa carreira profana os termos se invertem, porque então é o príncipe da sociologia quem é o arrivista, é o intelectual de esquerda quem vira ``parvenu", esquece o que escreveu e pede a bênção no clube dos mandachuvas.
Falou-se em traição de FHC quando o seu governo, seguindo à risca, naquele caso, o receituário do legalismo liberal, reprimiu a greve dos petroleiros. Mas a acusação é sentimental. Se houve traição por parte de FHC, ela nunca foi ideológica. Só as baratas, as mesmas há milhões de anos, não evoluem.
O verdadeiro ``crime" de FHC é que depois de coroado com os louros da carreira científica, ainda assim insatisfeito ele aspirou a uma confirmação exorbitante, ao aplauso também no mundo real, ao Nobel da prática -essa a imensidão da sua vaidade. Só que há um antagonismo entre os dois mundos que nem o PFL consegue conciliar.
O abismo que divide pensamento e ação é intransponível como a regra da culinária judaica, que manda separar alimentos da carne e alimentos do leite. Quando eles se juntam, a consequência é cataclísmica, monstruosa. No caso da política o resultado é Akenaton, Maomé, Savonarola, Robespierre, Lênin.
Pouco afeito a esses despenhadeiros, mais amigo da nossa amena ``cordialidade", o modelo do presidente, para que não venham dizer que ele é incapaz de modéstias, nada mais é que Getúlio Vargas, o gênio da acomodação, o responsável pelo fato de que entre nós abortou a guerra civil americana.
Estamos reencenando a enésima pantomima dela, no entanto, com José Serra no papel de ministro da indústria ianque e ACM como o velho general Lee, dos confederados. Ocorre que o nosso Lincoln não é pura vida, certeza solene e irracional, mas um diletante no poder, um espectro que tem a nostalgia de reencarnar como ação.
Assim como diziam que o problema não era tanto o AI-5 nas mãos do chefe de governo, mas do guarda da esquina, o pior de um presidente intelectual é o séquito de tantãs, de cientistas da vida e do dinheiro alheios, de cabaços sem alma que fazem do idealismo e do oportunismo uma coisa só.
A política é assunto sério demais para ser confiado a universitários. Resta uma esperança, porém. É que alguma revisão crítica mostre que a obra autoral de FHC, ao contrário do que supomos, era medíocre, de preferência até plagiária. Só assim ele será livre para agir. Pois idéia e ação se repelem espontaneamente.

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