São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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As grossas camadas do tempo

ROBERT DARNTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

As tentativas de comemorar o fim da Segunda Guerra Mundial revelaram algumas fascinantes linhas de fratura de nossa memória coletiva. Não conseguimos chegar a um acordo sobre quem deveria comparecer às cerimônias (deveria Helmut Kohl estar ao lado dos líderes dos países aliados nas praias da Normandia? Lech Walesa deveria figurar ao lado de Kohl e dos chefes de Estado aliados na cerimônia em Berlim?), sobre seu significado (derrota do nazismo, libertação da Alemanha ou começo da Guerra Fria?) e mesmo sobre as datas (a rendição incondicional ocorreu em 8 de maio, no quartel-general de Eisenhower em Reims, ou em 9 de maio, no quartel-general do marechal Zhukov em Berlim, data celebrada nos países do antigo Pacto de Varsóvia?).
Tais disputas podem parecer triviais, mas podem também ocasionar batalhas políticas e incidentes diplomáticos. Quando o Museu Aeroespacial da Smithsonian Institution (EUA) pensou em marcar o 50º aniversário do bombardeio de Hiroshima com uma exposição capaz de levantar questões incômodas sobre o uso de armas atômicas, os conservadores protestaram ferozmente, o diretor do museu demitiu-se e a exposição foi expurgada de qualquer coisa que pudesse ofender os veteranos da Segunda Guerra Mundial.
Nesse ínterim, em Tóquio, o governo japonês recusava-se a pedir desculpas pelas atrocidades cometidas por suas tropas durante a guerra. Conseguiu assim irritar a Coréia do Sul, uma de suas aliadas mais próximas hoje e uma de suas maiores vítimas 50 anos atrás. A questão toda girava em torno de alguns ideogramas japoneses, cujos sentidos vão de ``sentir remorso" a ``refletir", e de milhões de dólares em comércio, além da boa vizinhança e do orgulho nacional.
Por que não conseguimos esquecer as batalhas do passado para tratar de nosso presente, com o aval do historiador nipo-americano Francis Fukuyama, para quem a história chegou ao fim? O problema está em onde colocar o ponto final. Nem mesmo as datas deixam-se fixar, os próprios lugares estão sempre mudando.
Tomemos o exemplo de Berlim, foco de tanta confusão ao fim da Segunda Guerra. Berlim produziu a maior data desde a guerra: 9 de novembro de 1989, o dia em que o muro caiu. Parecia a data perfeita para comemorar o fim da Guerra Fria e o nascimento de uma Alemanha reunificada; além disso, daria um toque final de simetria por coincidir com o segundo centenário da Revolução Francesa. Alguns dos cartazes carregados pelos alemães orientais em manifestações contra seu próprio governo, às vésperas de 9 de novembro, diziam simplesmente: ``1789- 1989".
Mas, quando começaram a examinar mais a fundo a possibilidade de fazer do 9 de novembro seu feriado nacional, os alemães perceberam que a proposta não daria certo. O peso simbólico da data era excessivo: 9 de novembro de 1918, proclamação da República depois do colapso do império guilhermino; 9 de novembro de 1923, Hitler fracassa com seu golpe de Estado da cervejaria em Munique; 9 de novembro de 1938, Noite dos Cristais e escalada de violência contra os judeus.
Em Berlim, o espaço é tão problemático quanto o tempo. Agora que é uma única cidade, em vez de duas, Berlim deve ser redesenhada. Mas como rearrumar a densa paisagem simbólica do centro da cidade? Em maio de 1945, a maior parte dos edifícios estava destruída, e os berlinenses enfrentavam uma dura tarefa de reconstrução. As autoridades ocidentais restauraram o Palácio de Charlottenburg, virtualmente em ruínas. Mas as autoridades orientais mandaram pelos ares o palácio principal dos Hohenzollern, que ficava no coração da cidade -a avenida Unter den Linden- e sobrevivera parcialmente aos bombardeios. Walter Ulbricht, o líder comunista, decidiu substituí-lo por um moderno ``Palácio da República", que deveria abrigar o parlamento fantoche da Alemanha Oriental e servir de monumento à ditadura do proletariado, erguido sobre as ruínas de um monumento ao feudalismo.
Depois da destruição do muro, constatou-se que o novo palácio sofria de um caso fatal de asbesto. O que fazer: limpá-lo e restaurá-lo ou então explodi-lo, como se fizera a seu antecessor, e substituí-lo por uma nova estrutura monumental, desta feita em honra à nova capital da nova Alemanha? Quando o debate irrompeu em 1993, um ocidental abastado conseguiu permissão para estender uma gigantesca tela sobre a face do edifício que dá para Unter den Linden. A tela é uma réplica da fachada construída pelos monarcas prussianos no século 18 e funciona como argumento a favor da restauração do edifício original, antigo centro simbólico de um antigo regime por enquanto soterrado pelo entulho do antigo regime comunista.
Enquanto o destino do palácio permanecia misterioso, Christo Javacheff empacotou o Reichstag inteiro com um outro tipo de material sintético -e os berlinenses viram-se envolvidos em um novo debate. Quando o parlamento se transferir de Bonn, o edifício será o foco da política da Alemanha reunificada. Mas ele também é um símbolo do fracasso da política na República de Weimar, quando Hitler tomou o poder por meio de intrigas de bastidores e usou o incêndio do Reichstag como pretexto para destruir a república. O que significa então o pacote gigantesco de Christo? Uma tentativa de desfazer-se do passado ocultando-o sob o embrulho? De saneá-lo? De começar um novo capítulo da história política com um toque de humor? Ou de transformar um monumento político num objeto estético?
O caso mais complicado de transformação simbólica teve lugar no espaço mais sagrado da cidade, a Neue Wache, monumento ao soldado desconhecido em Unter den Linden. Em sua inauguração oficial, por ocasião do aniversário da Batalha de Waterloo, em 1822, a construção à maneira de templo foi dedicada à memória dos soldados mortos na ``Guerra de Libertação" contra Napoleão. Até a Primeira Guerra Mundial, o local serviu de alojamento para a guarnição do palácio dos Hohenzollern, logo ao lado. Foi remodelado e reinaugurado em 1931, como memorial aos alemães mortos em guerras, utilizado por Hitler para cerimônias militares, quase destruído na Segunda Guerra Mundial e novamente remodelado, após anos de indecisão, pelas autoridades comunistas, que o transformaram em principal monumento de seu Estado ``antifascista". Colocaram uma inscrição ``às vítimas do fascismo e do militarismo" nas paredes laterais e acenderam uma chama eterna sobre os túmulos de um soldado desconhecido e de um combatente da resistência também desconhecido.
Mas as chamas eternas já não são como antes. O chanceler Kohl mandou apagar a chama da Neue Wache e substituiu-a por uma cópia de uma estátua de Kãthe Kollwitz, uma mãe a carregar no colo o corpo de seu filho morto. A antiga inscrição cedeu lugar a uma nova, ``às vítimas da guerra e da tirania". Essas mudanças desencadearam uma explosão de polêmica e manifestações furiosas, já que Kohl parecia estar rearrumando a história de um modo que confundia as vítimas do nazismo com seu sequazes -pois ambos podem ser considerados vítimas da guerra-, enquanto que ``tirania" podia ser entendida como referência aos antigos senhores da Alemanha Oriental. Ademais, a escultura, apesar da bem conhecida simpatia de Kollwitz pelo socialismo, sugeria uma ``pietà" cristã, coisa que ofendia os que consideravam os judeus exterminados no Holocausto como as maiores vítimas da guerra.
Não há dúvida de que Kohl, que perdeu um irmão na guerra, estava à procura de uma fórmula capaz de fechar todas as feridas do passado. Ao invés disso, conseguiu apenas reabri-las. Mas não há como responsabilizá-lo, uma vez que o passado se acumula em camadas tão grossas sobre a paisagem berlinense, que ninguém seria capaz de tocá-la sem provocar uma explosão simbólica.
O problema de paisagens simbólicas em transformação diz respeito a todos, não só aos alemães. Os gregos querem que o Museu Britânico de Londres devolva-lhes os mármores de Elgin. Os apaches querem suas máscaras sagradas de volta do Museu de História Natural de Nova York. Os argentinos querem achar algum meio de encarar as perdas em sua ``guerra suja". A história simplesmente recusa-se a morrer. Declarem-na morta e seus monumentos ganharão vida nova, como a estátua do Commendatore em "Don Giovanni, ameaçando arrastar-nos de volta ao inferno que tentávamos esquecer.
Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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