São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 1995 |
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Isso não é bossa nova, nem é muito natural
ALBERTO HELENA JR.
Durante duas horas, não se ouve um clique de isqueiro, um pigarro, um arrastar de cadeira ou o tilintar de um copo. A multidão está simplesmente hipnotizada. No máximo, sussurra versos de Chega de Saudade, como num consentimento tácito dado por João Gilberto. Isso é bossa nova, isso é muito natural, refinado, respeitoso, embora talvez tenha sido a semente da rebeldia dos anos 60, que, se contorcendo, chega ao fim do século na sua forma mais perversa. Manhã de domingo: sob um céu de chumbo, cerca de 2.000 pessoas, todas muito jovens, se atiram a uma batalha campal sem causa nem sentido, em pleno Pacaembu, enquanto o Palmeiras celebra a conquista da Supercopa de Juniores, ao bater por 1 a 0 o São Paulo, na morte súbita do futebol. Isso é muito funk, um trágico rap que canta a tragédia que se avizinha. Sim, porque, na raiz dessa violência já crônica, repetitiva, cotidiana, dos campos de futebol, fervilha o ódio à miséria, que se expressa na estética da periferia. Quem são esses marginais que vestem as camisas das torcidas uniformizadas como armaduras e vão para os estádios não mais em busca de um fugaz momento de vitória nas suas vidas feitas de derrotas no dia-a-dia, de gerações a gerações, mas sim para extravasar a revolta do eterno derrotado? São jovens, alguns meninos ainda, pobres, vindos das bordas da cidade grande, das beiradas do consumo que a TV lhes martela à toda hora, do tênis importado ao comportamento igualmente importado dos marginais do Primeiro Mundo. São grunges de Itaquera, Capela do Socorro, Sapopemba, Osasco, Guarulhos, a orla de miséria que cerca e aos poucos vai sufocando os bolsões de riqueza acuados nas zonas sul e oeste da metrópole. Gente, o buraco é mais embaixo. Maior, mais fundo e ainda mais escondido do que o furo na meia do presidente. Isso aí é apenas a ponta do iceberg. Isso não é bossa nova, nem é muito natural. Mas não é só por isso que quero mudar para Amsterdã. É para ver de perto essa jóia preciosa, única, do futebol mundial mais conhecida por Ajax, que ontem vi, pela TV, liquidar o Utrecht, na abertura do Campeonato Holandês, por 4 a 0. E jogando à meia boca, sem muito esforço. Aliás, no sábado, vi também excertos da goleada do Ajax sobre a Lazio: 5 a 0, num amistoso. E cada vez mais cresce o mistério: como pode esse time, jogando com quatro atacantes natos, dois pontas-pontas, dois líberos de técnica refinadíssima, como Blind e Frank De Boer, dois laterais ofensivos e dois meias arrasar esse burocrático 4-4-2 que domina o futebol? Só falta perder para o Grêmio na final em Tóquio. Aí, então, fujo para o Taiti e renego de vez esse amaldiçoado jogo da bola. Texto Anterior: Doze torcedores ficam internados Próximo Texto: Violência barata Índice |
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