São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 1995
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O grande gesto

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA - A solidão absoluta é uma utopia. Mesmo o mais só dos seres jamais se livrará da companhia de seus erros. E nada será mais decisivo para a construção da biografia de um homem do que o encontro com os seus equívocos.
Só a mediocridade é infalível. O talento, ao contrário, é capaz de enxergar o próprio erro instantaneamente, assim que o comete. O gênio autêntico sabe que escamotear o erro é o mesmo que errar em dobro.
Duas categorias profissionais vivem flertando com a mediocridade. Jornalistas e médicos têm extrema dificuldade em lidar com o erro. Aproximam-se perigosamente da infalibilidade. E só há duas definições possíveis para o cidadão infalível: ou se trata de uma fraude ou de um defunto.
Na última semana, uma orquídea brotou do pântano corporativo em que costumam ser afundados os erros médicos. Silvano Raia, um dos profissionais mais conceituados do país, disse à Folha que um erro de sua equipe matou Florestan Fernandes.
Suas palavras foram publicadas há uma semana. Um detalhe adicionou grandeza à ação de Raia. Não fosse por um pedido de autópsia feito pelo médico, a falha de sua equipe seria cremada junto com o corpo de Florestan.
Seguiu-se à entrevista um silêncio hediondo. Nenhum comentário. Descaso total. As pessoas estavam como que despreparadas para o grande gesto.
Autor de 133 transplantes de fígado, Silvano Raia teve um encontro com o erro fatal. Bem verdade que não o cometeu diretamente. A falha é atribuída à sua equipe. Mas parece decidido a assumir sua parcela de responsabilidade. Age com dignidade incomum.
Normalmente a imprensa prefere o insulto ao elogio. É um de nossos erros mais frequentes. Desde a publicação da entrevista de Raia fiquei tentado a inverter a regra, a elogiar o reconhecimento do erro.
O terremoto do Banco Econômico terminou por soterrar minha intenção, só hoje posta em prática. O exemplo de Raia deveria contaminar toda a corrente sanguínea da corporação médica, em ritmo de septicemia.

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