São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 1995
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Karen Finley traz a sua oratória profana

Artista é atração do Festival de Artes Cênicas em SP

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Karen Finley, 39, atriz americana, artista multimídia, chega afinal ao Brasil, através do Festival Internacional de Artes Cênicas.
``A Certain Level of Denial", o monólogo que mostra em São Paulo entre 14 e 16 de outubro, seguindo depois para Curitiba e Salvador, é um discurso violento contra o que ela chama de sociedade patriarcal.
É também um espetáculo católico, sendo ela ``católica pagã".
Sem o canadense Robert Lepage, o inglês Peter Brook e o americano Robert Wilson, adiados, o festival abre dia 4 de outubro, com outras atrações como o ator Michel Piccoli, o Teatro Nacional de Craiova, da Romênia, e o Teatro Dramático de Maly, da Rússia (veja quadro abaixo).
A seguir, entrevista por telefone com Karen Finley.

Folha - Nas ``performances", você não teme lidar com a política, até mencionando políticos contemporâneos. Você acredita que tem um papel a representar na política americana, como artista?
Karen Finley - Bem, eu tenho um papel a representar, até porque neste momento eu estou processando o governo por causa do meu trabalho, a decência da linguagem e... Não sei se você acompanha o problema da NEA (National Endowment for the Arts, o ministério da cultura) que o meu país tem tido, quanto à obscenidade na arte. Eu acredito que eu represento um papel em termos políticos com a minha questão legal.
Folha - Qual é a razão de você estar processando o governo?
Karen - Eu recebi uma dotação e ela foi retirada por causa da natureza política do meu trabalho. E a natureza política é que eu sou pelos direitos homossexuais, pelos direitos das mulheres, pela nudez.
Folha - Você está processando o governo, então, por censura?
Karen - Sim.
Folha - Como você vê o movimento no sentido da censura de música, filmes, televisão, no discurso e nos atos dos políticos americanos?
Karen - Eu acredito que a arte é um bode expiatório. Com o fim do comunismo na Rússia, os políticos estão usando, para obter dinheiro, eles estão usando os artistas como bodes expiatórios políticos. É o que eu sinto. Eu sou contra a censura, sou contra, por exemplo, o que eles dizem sobre o ``rap", de que as crianças não podem ouvir certas letras. Isso já bateu no ridículo. Eu acho também que se tornou muito vago quem vai tomar tais decisões. Eu acredito que nós temos que viver numa sociedade em que seja ``ok" ser ofendido.
Folha - ``A Certain Level of Denial" lida com a religião e tem frases como ``a Virgem Maria é favorável ao aborto". O que fez você se interessar pelo tema?
Karen - Bem, sendo católica... É a razão número um. (ri) E eu acredito que muitas vezes a religião, ou a Direita Religiosa... Você conhece a expressão, que é usada na América?
Folha - Sim, para a Coalizão Cristã e outros.
Karen - Sim, e também para alguns católicos, como o cardeal de Nova York. Eles têm feito de tudo para diminuir os homossexuais e as mulheres. Estão realmente fazendo de tudo, até um limite que é anticristão. E eu também sinto que o sexo, hoje, não é para ser importante -e é por isso que eu como que busco liberar a noção de Maria. Quer dizer, eu acredito que a Virgem Maria é mais como um arquétipo e eu acho que o arquétipo verdadeiro de Maria é favorável à liberdade de aborto.
Folha - O monólogo é uma peça de oratória. Por que esta forma de ``performance"?
Karen - Bem, nos anos 60 havia um discurso assim, um discurso político, ou palavras, e elas serviam de meio para as pessoas falarem, mesmo sem ter, por exemplo, dinheiro. Eu me interesso muito pelos discursos de Martin Luther King, ou de John Kennedy. Eu me vejo como uma oradora de motivação.
Folha - A peça estreou dois, três anos atrás. O que mudou no país e na própria peça, desde então?
Karen - Eu tive um bebê. (ri) E vamos ver o que mais...
Folha - Isso teve algum reflexo na peça?
Karen - Bem, talvez. A ``performance" é sobre perda. As pessoas de quem eu estou falando estão morrendo e você pode ver a ``performance" como sendo sobre Aids, ou sobre os direitos das mulheres, mas perda... e como sobreviver numa sociedade em que você não é reconhecido.
Folha - Você vai à igreja? Você reza?
Karen - Sim, eu rezo. (ri) De vez em quando eu vou à igreja. Sim, eu... Eu não acho que a minha visão seja muito diferente da Igreja Católica tradicional. Mas eu me considero uma católica pagã. Eu acredito em mais de um deus, mas sou católica, sabe, como uma católica pagã.
Folha - O Brasil é tido como o maior país católico.
Karen - É?
Folha - E está atravessando uma fase semelhante...
Karen - Eu amo acender velas, sabia?!
Folha - Uma fase de mudanças semelhante. Você espera alguma reação, aqui?
Karen - Ah, provavelmente, ou talvez não, por causa da língua. Mas é engraçado, porque geralmente eu tenho mais problemas com quem não viu o trabalho. Mas eu não pensei nisso. Eu estava pensando em ir para o Brasil para como que escapar do meu país. (ri)
Folha - A peça tem nudez. Você sente muita reação por causa da nudez?
Karen - Sempre... Desta vez não foi, mas geralmente é a primeira pergunta que me fazem. (ri) Como artista visual, eu acho natural, com toda a história da pintura da figura humana, do desenho. E eu sei que já foi feito no palco antes, então não penso que seja novo. Assim, não faço para chocar, mas porque vejo como um figurino. Eu vejo a nudez como um figurino.
Folha - Você usa ícones católicos no palco?
Karen - Não. Apenas eu. (ri) Quer dizer, sim. Podem ser. Eu projeto pinturas. Quando eu estou fazendo a passagem de que ``a Virgem Maria é favorável ao aborto", eu tenho uma pintura projetada, uma pintura religiosa, no alto. Ou eu tenho uma pintura que diz ``o meu Deus é uma mulher" ou ``o meu Deus é homossexual".

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