São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 1995
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Há uma Ruth no governo que vai, armada, à luta

DANIEL BRAMATTI
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE

A secretária nacional de Fiscalização do Trabalho, Ruth Vilela, 46, mãe de dois filhos e avó de uma neta, prefere trocar seu gabinete por ações diretas nos grotões do país.
No mês passado, com um revólver calibre 22 na bota e comandando uma equipe de fiscais do Ministério do Trabalho e agentes da Polícia Federal, Ruth entrou numa fazenda vigiada por jagunços armados, no Mato Grosso do Sul, e libertou 33 trabalhadores submetidos a trabalho escravo.
``Nesta função, a gente vive como Indiana Jones", diz a secretária, que também resgatou na fazenda um bebê de três meses em avançado estado de desnutrição: ``Os médicos que atenderam a criança disseram que ela não sobreviveria mais 24 horas se não tivesse recebido cuidados".
No início do mês, Ruth e uma equipe de 20 fiscais, médicos e engenheiros de segurança rodaram cerca de 500 quilômetros em estradas de terra, no norte de Minas Gerais, investigando a possível ocorrência de trabalho escravo nas carvoarias da região.
``Não encontramos escravidão propriamente dita, mas outras formas de exploração, como utilização de mão-de-obra infantil e jornadas de trabalho de até 14 horas por dia. Isso pode ser visto como uma forma moderna de escravidão", afirma.
A seguir, os principais trechos da entrevista que a secretária concedeu à Folha, em sua casa, em Belo Horizonte.

Folha - A senhora já usou revólver em alguma operação?
Ruth Vilela - Já houve situações de perigo iminente. Quando se está numa fiscalização no meio da mata fechada, é impossível saber se há alguma ameaça adiante ou não. Nunca se sabe o que se pode encontrar pela frente.
Folha - No caso do trabalho escravo, como os trabalhadores reagem quando aparece alguém dispostos a ajudá-los?
Ruth Vilela - O primeiro sentimento é de perplexidade. Essas pessoas vivem com um nível de aspiração baixíssimo.
Elas não têm nenhuma esperança de que seus problemas possam ser resolvidos. A perplexidade dura até o momento em que explicamos quem somos e o tipo de trabalho que fazemos.
Folha - Muitos ``gatos" (intermediários de mão-de-obra) são também pobres. Quem lucra com a superexploração dos carvoeiros e com o trabalho escravo?
Ruth Vilela -A utilização de ``gatos" ou empreiteiros é sempre um artifício para burlar a legislação trabalhista. As verdadeiras responsáveis são as siderúrgicas que contratam os ``gatos" e usufruem da força de trabalho dos carvoeiros e do carvão que eles produzem.
Folha - É possível punir essas empresas?
Ruth Vilela - Já há instrumentos que permitem multar as empresas. Mas as multas trabalhistas são uma atitude mais pedagógica do que propriamente uma punição.
Folha - E do ponto de vista penal?
Ruth Vilela - O nosso Código Penal é da década de 40, e, na época, os legisladores não poderiam prever essas formas modernas de escravidão. Essa legislação precisa ser mudada para que fique mais fácil caracterizar a escravidão. O artigo 149 do Código Penal, que conceitua a escravidão, se prende muito ao cerceamento da liberdade do trabalhador. É preciso ampliar esse conceito, pois a exploração do trabalho humano sem o mínimo respeito aos direitos básicos previstos na Constituição também é escravidão.
Folha - A fiscalização do governo tem sido omissa?
Ruth Vilela - É um erro achar que a intervenção do Estado por meio de fiscalização é suficiente para exterminar essas formas de exploração do trabalho. O que provoca isso é o que eu chamo de capitalismo predador, ou seja, a perseguição do lucro sem levar em conta questões éticas.
Folha - A CPT (Comissão Pastoral da Terra) estima em 10 mil o número de carvoeiros submetidos à escravidão.
Ruth Vilela - A CPT divulga dados estimados com base em denúncias que chegam ao seu conhecimento, o que é muito diferente de dados estatísticos.
O Ministério do Trabalho só pode divulgar dados colhidos ``in loco" pela fiscalização. Ainda não há como saber se os números da CPT são superestimados.
Folha - Como foi o resgate do bebê no Mato Grosso do Sul?
Ruth Vilela - Era uma fazenda em que os trabalhadores estavam colhendo sementes. Não só a fiscalização constatou o caso dessa criança, como encontrou índios doentes. O ``gato" foi preso por omissão de socorro.
Folha - A sra. pretende convocar empresários do setor siderúrgico, que consomem o carvão, para mostrar vídeos sobre as condições degradantes de trabalho do norte de Minas. A sra. acha que eles não conhecem essa realidade?
Ruth Vilela - Prefiro dar a eles o benefício da dúvida. Deve haver entre eles pessoas respeitáveis, que têm família e filhos, e que desconhecem as condições locais. Vamos apostar nesse processo de sensibilização. O poder da imagem é muito forte.
Folha - Por que a sra. prefere comandar as ações de fiscalização ``in loco"?
Ruth Vilela - Como esse é um trabalho relativamente novo, em termos da metodologia utilizada, não posso ser uma tecnocrata que planeja as operações de um gabinete com ar-condicionado.
Tenho obrigação de ir e viver essas situações, para ter a noção exata das providências a serem adotadas para que as operações tenham o máximo de eficiência possível.
Folha - E quando a equipe se adaptar, a sra. pretende continuar participando das operações?
Ruth Vilela - Não de todas. Mas, sempre que for possível, pretendo ir. A única forma de aprimorar o trabalho é sentindo na pele as dificuldades e as experiências bem sucedidas.
Folha - Como os fiscais reagem à sua presença?
Ruth Vilela - Acho que eles sentem um pouco mais de segurança ao saber que está presente alguém que pode, numa emergência, ajudá-los no que for necessário. Mas, para consolidar o trabalho de fiscalização, eles realmente não dependem da minha presença.

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