São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 1995
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O Deus vivo e o Deus morto

GERARDO MELLO MOURÃO

Antigamente o discurso religioso, o chamado ``sermo de Deo", era tratado pelos teólogos, pelos místicos e pelos ascetas. Em nossos tempos indigentes a teologia passou a ser coisa de sociólogos e assistentes sociais.
É o caso do sr. Genésio Darci Boff, que adotara o nome de São Leonardo de Porto Maurício e se assinava, em seus tempos de frade, como frei Leonardo Boff, O.F.M. O ex-capuchinho fez fortuna como ``teólogo" (as aspas são necessárias) da chamada Teologia da Libertação, uma espécie de sociologia ``marxóide", uma Aids de sacristia que infeccionou o sangue da Igreja em notórios portadores desse vírus cultural nas pobres veias do Terceiro Mundo.
O sr. Boff, frade apóstata e goliardo, reapareceu há alguns dias em desfrutável entrevista em um dos grandes semanários da praça. Agora, ``défroque", já não lhe serve o remédio do silêncio obsequioso com que a Santa Sé o tentara proteger. O ex-frade liberou geral.
Depois de investir durante anos contra os bispos, os cardeais, os padres ortodoxos e o próprio papa, não tendo mais a quem atacar no corpo da igreja de que se serviu de forma pouco elegante para ao fim mandar às urtigas seus votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência, passou a atacar o próprio Deus da religião que jurara professar.
Já não são mais os bispos e os papas que não prestam. Agora, o que não presta para o sr. Genésio Darci, aliás Leonardo Boff, é o próprio Deus da Igreja Católica. Para ele, trata-se de um Deus chato e monótono.
Parece que após tantos anos de profissão religiosa o pobre frade herético deve estar frustrado por ter perdido tanto tempo fingindo acreditar nesse Deus precário e desagradável, a cujo serviço teria perdido a juventude e os melhores dias da vida madura, para chegar agora às portas da idade provecta com a alma ressequida pela decepção.
Uma das marcas mais evidentes da deserção da fé é a perda do sentido sacral que ela atribui aos valores da vida. O amor, por exemplo, o amor entre um homem e uma mulher é, para o cristão, para um teólogo, um acontecimento sacral, um sacramento da vida. O sr. Genésio Darci, aliás Leonardo Boff, ou nunca soube disso ou se esqueceu.
Proclama, assim, na sua descoberta crepuscular, que a vida conjugal é uma ``experiência". Ninguém tem o direito de julgar essas experiências sociológicas dos frades arrependidos, especialmente quando elas não chegam a ter aquela grandeza dramática do padre Jacinto Loyson, evocada por Unamuno, que dela faz um dos momentos centrais de sua ``Agonia del Cristianismo".
O herói unamuniano sentia a necessidade de fazer um filho porque a geração de um ser criado de seu próprio sangue seria a verdadeira prefiguração da ressurreição da carne. Mas isso, que pode ser um drama para um teólogo e até para um santo, não pode ser entendido por um sociólogo.
O Deus chato e monótono do sr. Boff não tem nada a ver com o Deus dos cristãos. O Deus dos cristãos é aquele Deus dos judeus que disse de si mesmo: ``Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó". Ora, Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos. Dentro das fronteiras do cristianismo sempre ergueu-se a voz dos mestres e dos santos para denunciar os que apenas conhecem o Deus dos mortos. Que é o Deus dos mortos? Pascal, um crente do Deus vivo, exclamava: ``Deus de Abraão, Isaac e Jacó, não o Deus dos filósofos e dos sábios".
``Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo", exclamava São Paulo. Pois o Deus vivo é um Deus mesmo, isto é, senhor absoluto de nossa existência, o Deus das Escrituras, capaz de castigar seu povo com as guerras e os flagelos e de restituir-lhe a terra prometida.
É o Deus de Job. O Deus de Tertuliano e de Santo Agostinho, de Orígenes e de São Bernardo, o Deus incontrolável dos místicos e estigmatizados, o Deus de Teresa de Ávila e de João da Cruz, é o Deus de Kierkegaard e de Léon Bloy, o Deus de Dostoievsky, o Deus renegado dos poetas malditos. Deus de Rimbaud e Baudelaire, o Deus de Michelangelo, o Deus de Dante e de William Blake, que dizia aos filósofos: ``A visão que tendes do Cristo é a maior inimiga de minha própria visão".
O Deus de Aristóteles e de Espinoza, de Descartes e de Montaigne, é o Deus dos mortos. O Deus dos vivos é o da loucura da cruz, que não se contém na cova de sete palmos da justiça social, do êxito no mundo, das pompas dos pomposos, mas se manifesta em oceanos de amor infinito, que vale nosso sangue e nosso último sopro de vida.
É o Deus de João de Patmos e de Soloviev, o Deus crucificado até o fim dos séculos por todos e por cada um dos homens, para nos assegurar a abrangência da redenção, como ensina Afonso de Liguori, que fez da lembrança dessa passagem das Escrituras o brasão de seu castelo religioso.
Tudo será monótono, menos esse Deus arteiro e impagável, como o entendia Rilke, que cria todos os poliedros dos dias e das noites para seus servidores e que sempre os espanta e surpreende com sua presença cruelmente exigente e docemente compassiva.
Infelizmente, nem a casa de São Francisco -um dos cavaleiros do Deus vivo- foi capaz de fazer o sr. Boff libertar-se do Deus dos mortos, o dos sociólogos e dos economistas, que cuida do salário mínimo e da reforma agrária -tarefa fundamental para todos nós. O grande equívoco do ex-frade foi pensar que era teólogo, que sabia falar o ``sermo de Deo", quando na verdade não sabe mais do que o pequeno discurso dos sociólogos.

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