São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 1995
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Neo-social no século 17

ANTONIO DELFIM NETTO

Em algum momento os tecnoburocratas vão ter que acertar contas com Aristóteles (em matéria de lógica), com Heródoto (em matéria de história) e com Vico (em matéria de eterno retorno).
A proposta de emenda constitucional do artigo 148 nos leva de volta à Inglaterra do século 17, antes da Declaração dos Direitos de 1688, que recusou à Coroa o poder de cobrar tributo sem a prévia autorização do Parlamento.
``No taxation without law", gritaram os ingleses! Pode parecer exagero, mas é isso que devemos gritar agora, diante da proposta de emenda aos incisos 2 e 3 daquele artigo.
Lá se diz que ``A União poderá instituir empréstimos compulsórios:... 2 - em razão de conjuntura que exija a absorção de poder aquisitivo" e ``3 - para financiar investimentos públicos de relevante interesse nacional".
Perguntemos, em primeiro lugar, o que se pretende? Nada mais nada menos do que eliminar da Constituição, no caso de investimentos públicos financiados por empréstimo compulsório, o ``caráter de urgência" e as limitações que protegem o cidadão contra a truculência do Estado (o princípio da anterioridade).
Nos casos de ``calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência" este não existe, como é óbvio (inciso 1 do artigo 148).
E, mais importante do que tudo, pretende-se eliminar a necessidade de lei complementar hoje exigida. Isso provavelmente tornaria possível instituir um empréstimo compulsório por medida provisória, igual às que o presidente tem editado e reeditado (à média de duas por dia útil), até tornar a sua aprovação no Congresso puramente adjetiva porque o substantivo já produziu seus efeitos.
Voltamos, assim, ao século 17! Podemos ter, como no caso do império absoluto, tributação sem aprovação prévia do Parlamento.
No caso dos ``investimentos públicos de relevante interesse nacional" (que, evidentemente, serão definidos pelos iluminados burocratas!) poder-se-ia argumentar que, a despeito de todos esses males inaceitáveis, trata-se de um fato físico, palpável, visível, definido no espaço-tempo, o que permitiria uma apreciação objetiva da relação custo-benefício, ainda que a posteriori.
Mas, no caso do inciso 2 da proposta de empréstimo compulsório, ``em razão de conjuntura que exija absorção temporária do poder aquisitivo", estamos diante de um objeto mental (o oxímoro mais amado do burocrata), impalpável, subjetivo, de origem misteriosa e discutível.
Um equívoco cambial que produz um déficit em conta corrente revela ``excesso de poder aquisitivo"? Um desequilíbrio produzido pelas contas públicas revela ``excesso de poder aquisitivo"? Uma manifestação de incompetência do Banco Central que exige um enorme aumento da base monetária revela ``excesso de poder aquisitivo"? Afinal, como se define o ``excesso de poder aquisitivo"?
Nada protegerá a sociedade dessa soberba e ridícula pretensão científica. O que se ouve em defesa da tese é o indigente argumento de que tais dispositivos existem ``em muitas, quase todas as Constituições".
Em quais? E em que circunstâncias podem ser ou foram usados? Estamos em pleno retorno: do presidencialismo imperial vamos a passos largos para o imperialismo presidencial. Ah, do que são capazes esses neo-sociais no poder!

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