São Paulo, sexta-feira, 1 de setembro de 1995
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Collor e o exorcismo da imprensa

LUÍS NASSIF

A entrevista do repórter Roberto Cabrini, do SBT, com o ex-presidente Fernando Collor despertou fantasmas que, pelo bem da imprensa, um dia ainda terão de ser exorcizados.
Já existe suficiente distanciamento para que se comece a avaliar com serenidade o comportamento da mídia no episódio, separando fatos de fantasias, até como compromisso com a história.
Daqui a alguns anos, longe do olho do furacão, quem se debruçar sobre a cobertura da mídia nesse período levará um susto. A quantidade de histórias fantasiosas contaminando fatos verossímeis comprometerá a grandeza cívica do episódio.
O que parecia ser a queda da Bastilha poderá se converter em episódio de linchamento vulgar. E todos os fatos objetivos -como a montagem de um formidável sistema de propinas no serviço público por parte do esquema Collor- desmoralizados pelo maniqueísmo absurdo com a que a imprensa se comportou no episódio.
O repórter repetiu com exatidão impressionante o clima inquisitorial que dominou a imprensa na época. Foi duríssimo nas perguntas e enveredou pelo campo pessoal com a frieza de um soldado incumbido de executar moribundos no campo de batalha.
Aceitou como verdadeiras todas as acusações, mesmo as absurdas. E tratou com desdém todas as respostas, mesmo as lógicas -da mesma maneira que quase todos nós fazíamos em 1992. Qualquer avaliação que situasse Collor pouco abaixo do grau de agente máximo do mal não era politicamente correta.
Imaginação
Naquele tempo, a opinião pública ainda vivia chocada com a petulância e o despreparo da equipe collorida original, um bando de jagunços comandados por um presidente tão investido da aura de salvador que exalava arrogância por todos os poros.
Quando a campanha contra Collor ganhou vulto, essa animosidade deu margem a oportunismos de toda espécie. Criou-se o clima de linchamento propício ao afloramento dos sentimentos mais mesquinhos, um festival de exibicionismo. A cada dia era necessário produzir mais escândalos, como se a mera exposição de um amplo sistema de propinas não fosse suficiente.
Um dia era o Fernandinho do pó, no outro o sujeito que fazia macumbas no porão de sua casa, o sujeito que cantou a cunhada, o maníaco-depressivo que ficava em estado catatônico e precisava receber remédio na boca. Todo esse horror era desenhado em cima de rumores, sem um dado concreto sequer.
Três anos depois, a maioria absoluta dessas insinuações de cunho pessoal, que ajudaram a consagrar reputações jornalísticas da época, não receberam o benefício de uma confirmação sequer.
Era como se toda a falta de escrúpulos do sistema collorido tivesse se entranhado de maneira muito mais aguda na imprensa, tornando-nos muito piores do que eles. Quanto menor a capacidade de reação do governo, maior a valentia dos menores.
Versões e versões
Quando o repórter Cabrini desenterrou esse clima inquisitorial, com três anos de distância do paroxismo da época, foi como se expusesse aos olhos de todos os piores vícios da imprensa no período.
Collor diz que PC foi condenado exclusivamente por questões fiscais. O repórter "desmonta" a versão entrevistando PC, que diz que foi condenado pelas contas-fantasmas. O "crime" por trás das contas-fantasmas era o tráfico de drogas ou a não-declaração de doações de campanha, portanto, crime fiscal?
O repórter indaga sobre a versão de que o chefe do Gabinete Militar dava remédio na boca de Collor quando ele ficava em estado catatônico. Collor explode e sugere que se ouça o general. Ouvido, o general nega a versão. Mas Cabrini é taxativo: o repórter que divulgou a versão na época tem muita credibilidade. Cáspite! E os fatos?
Cabrini indaga de Collor se mantinha ligações estreitas com PC. "Claro que mantinha", diz o réu. "Ele era meu chefe de campanha". Aí ouve PC, que diz que Collor sabia de tudo o que ele fazia, pois ele, PC, era seu chefe de campanha. Conclusão: PC confirma que Collor era seu cúmplice.
Cabrini sugere que Collor se saiu melhor da história que PC, que foi preso. O ex-presidente explode novamente. Perdeu o cargo de presidente, ao qual foi guindado por voto popular. Foi escorraçado do cargo, sendo vaiado publicamente na saída. Tiraram-lhe a Presidência da República. É pouco? E o repórter: é, porque o PC foi preso.
O momento mais relevante da reportagem foi o desabafo de PC. Collor estava despreparado para o cargo. Não soube negociar com os políticos. Não cedeu em nada, não fez uma concessão, não autorizou uma indicação. Em outras palavras, não praticou fisiologia. Eis aí uma virtude pública, ou não? Mas como pode o mal dispor de um lado bom que seja?
Pelo jornalismo
Não se faz a defesa de Collor, mas do jornalismo. O colunista o enfrentou quando ainda era poderoso e foi alvo de perseguição e de processo judicial por parte do esquema collorido, justamente por denunciar sistemas de propinas. Não tem nenhum motivo pessoal para defendê-lo.
Mas há a necessidade de que um espírito isento disseque a cobertura jornalística da época e exponha todos os cadáveres que se acumularam no armário da imprensa, justamente para valorizar a parte relevante da cobertura. Senão, daqui a alguns anos, com PC, propinas e tudo, quando Collor for definitivamente reconhecido como o homem que abriu os caminhos do país para a modernidade, todos os fatos da campanha que o derrubou serão considerados fantasiosos -inclusive os verdadeiros.

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