São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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A palavra divina

JACK MILES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um repórter da Folha, que prefere não ser identificado, encontrou-se na semana passada com Deus e Jack Miles, intelectual americano, cujo livro "God - A Biography" será publicado no Brasil em 1996 (pela Cia. das Letras). Miles, um ex-jesuíta, trabalhou por vários anos como jornalista e é atualmente professor universitário na Califórnia. Ele falou à Folha através de um intérprete, enquanto Deus falou em português, com um leve sotaque.

Folha - Já liguei meu gravador mas, com sua permissão, gostaria de estabelecer algumas regras para esta conversa. Como devo identificar cada um de vocês?
Deus - "Assim dirás: Ehyeh me enviou até vós." (1)
Miles - Chame-me Dr. Ismael. (2)
Folha - Está bem. Ehyeh, esta é uma biografia autorizada?
Deus - (permanece em silêncio)
Folha - Dr. Ismael?
Miles - Sim, é uma biografia autorizada.
Folha - Como, exatamente? Deus indicou-o para escrever Sua vida?
Miles - Não, mas a "Tanakh" é Sua biografia oficial, ou ao menos sempre foi tida como tal. Só fiz chamar a atenção, respeitando a ordem cronológica, para aquelas partes que se referem mais diretamente a Ele.
Folha - O que é essa "Tanakh" a que o sr. se refere?
Miles - É o que os cristãos chamam de Antigo Testamento. Os judeus chamam-na por seu nome hebraico, "Tanakh", e lêem-na em sua sequência original.
Folha - O sr. quer dizer que os cristãos alteraram a ordem original?
Miles - Sim. No começo da era cristã, quando adicionaram o Novo Testamento, os compiladores cristãos alteraram a ordem das escrituras judaicas que haviam herdado. Transferiram os profetas do meio para o fim, de modo que eles precedessem a história de Jesus -vista por eles como consumação da profecia.
Folha - O sr. é um ex-jesuíta, mas ainda é cristão? O sr. se converteu ao judaísmo?
Miles - Não, não me converti. Ainda sou cristão praticante. Mesmo assim, reconheço que há duas Bíblias, uma judaica e a outra cristã, e que a história de Deus contada na Bíblia judaica é diferente da história contada na Bíblia cristã.
Folha - Ehyeh, permita-me perguntar: qual delas é a Bíblia correta?
Deus - "Cinge-te os rins como um homem, vou interrogar-te e tu Me responderás." (3)
Folha - Bem, Ehyeh, meus superiores na Folha não estão interessados em minhas respostas, e sim nas Suas. Dr. Ismael, presumo que o sr. acredite que a Bíblia judaica é a correta.
Miles - Não assumo nenhuma posição a esse respeito. Não sou Papa ou rabino-chefe. Meus métodos são os de um mero crítico literário. Como tal, posso apenas notar que há duas Bíblias, distintas e igualmente oficiais -ainda que com boa dose de coincidência-, sobre as quais podem ser escritas duas biografias de Deus. No livro que acabo de publicar, conto a vida de Deus tal como consta na Bíblia judaica. Aliás, essa história difere da que está no Antigo Testamento cristão mesmo que deixemos de lado a ausência de um Novo Testamento.
Folha - Em que sentido ela difere?
Miles - Simplificando bastante, em nome da brevidade, digamos que o arco narrativo da vida de Deus no Antigo Testamento cristão é: ação, silêncio, fala. O Antigo Testamento termina com as profecias, uma grande explosão de discurso. Em contraste, o arco narrativo na "Tanakh" judaica é: ação, fala, silêncio. O judaísmo localiza a mesma grande explosão de fala no meio; depois dela, muito embora não morra, Deus desaparece. De certa maneira, a vida de Deus segundo a "Tanakh" é marcada por Seus dois encontros fatídicos com Satã, Seu oponente cósmico. Na primeira ocasião, no Jardim do Éden, a serpente leva as criaturas humanas de Deus a desobedecer Suas ordens, e...
Deus - (interrompendo, em voz alta) "Porque fizeste isso
és maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida." (4)
Miles - Temo que Deus seja dado demais a citar a Si mesmo. É com estas palavras que Ele pune a serpente, Satã; mas Ele também Se interpõe entre Satã e suas criaturas humanas. Ele trata Satã não só como inimigo delas mas também Seu. Muito depois, entretanto, Satã retorna e pede a Deus que Lhe entregue um homem chamado Jó -um homem justo, note-se bem, e não um pecador. Ao invés de defender Seu servo devotado, como seria de se esperar, Deus...
Deus - (interrompendo novamente) "Seja! faze o que quiseres com ele, mas poupa-lhe a vida." (5)
Folha - (aflito, dirigindo-se a Miles) Ele está falando de mim?
Miles - Não se alarme. Ele está só citando a Si mesmo. Ele conhece bem a história de Jó, e sabe bem o que fez. Você pode tomar esta autocitação como uma espécie de confirmação -mas não espere por uma confirmação direta; nem eu espero. Seja como for, como eu dizia, ao invés de defender Seu servo, como seria adequado, Deus libera Satã para torturar o homem, e Satã põe-se então a fazer uso da liberdade que Deus lhe concedeu. A única condição é que se preserve a vida da vítima do experimento.
Folha - Conhecemos esse tipo de coisa no Brasil.
Miles - Meu amigo, o mundo inteiro conhece essas coisas.
Folha - Se o sr. diz... Mas o que acontece então?
Miles - Não somente Jó sobrevive à tortura, como ainda consegue interpelar apaixonadamente a autoridade divina que o entregou às mãos do torturador. Jó não sabe que Satã o tortura com o consentimento de Deus. Ele sabe apenas que não cometeu qualquer crime. Exige que Deus explique por que ele está sendo punido. Os amigos vêm confortar Jó, mas todos dizem que ele não deveria arriscar-se a tais perguntas.
Folha - E o que Deus diz?
Miles - Por um bom tempo, não diz nada. Quando finalmente fala, não explica nada. Ao invés...
Deus - (uma ventania subitamente varre a sala) "Atreves-te a anular Meu julgamento, ou a condenar-Me, para ficares justificado? Se tens um braço como o de Deus e podes trovejar com voz semelhante à Sua, reveste-te de glória e majestade, cobre-te de fausto e esplendor. Derrama o ardor de tua ira e, com um simples olhar, abate o arrogante. Humilha com o olhar o soberbo e esmaga no chão os ímpios; enterra-os todos juntos no pé e amarra-os cada qual na prisão. Então também te louvarei, porque podes com tua direita garantir-te a salvação." (6)
Folha - (para Miles) Ele está falando com o sr.?
Miles - Está e não está. Está citando Suas palavras a Jó. Talvez elas se apliquem a mim. Só sei dizer que, na história que estou lhe contando, na história que a "Tanakh" conta, Deus recusa-Se a Se explicar frente a Jó. Ele não Se digna a oferecer justificativas a um mero ser humano. Ao invés, Ele diz que só quando Jó mostrar ser um guerreiro invencível, um guerreiro comparável a Deus, só então Ele, Deus, admitirá...
Folha - ...que Jó estava certo.
Miles - Não exatamente: apenas que Jó é poderoso. Deus está tentando transformar os termos do confronto, de certo/errado para forte/fraco; está dizendo que, sendo Ele mesmo forte, pouco importa se Jó ou alguém mais está com a razão. Ele dá de ombros para a questão central de toda a moral.
Folha - E como Satã reage a isso?
Miles - Muito curiosamente, a esta altura Satã sumiu da história.
Folha - Por quê? O que aconteceu com ele?
Miles - Ninguém sabe. É como se a natureza e a eloquência inesperadas da pergunta de Jó tivessem exigido que o próprio Deus se encarregasse da sessão de tortura. Vale notar, aliás, que a tortura prossegue enquanto Deus faz Suas perguntas a Jó.

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