São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Do homem ao macaco

MARTA KOHL DE OLIVEIRA
STUDIES ON THE HISTORY OF BEHAVIOR: APE, PRIMITIVE AND CHILD

L. S. Vygotsky e A. R. Luria Edição e tradução do russo para o inglês: Victor I. Golod e Jane R. Knox Hillsdale, Lawrence Erlbaum Associates, 246 págs.
As relações entre a política e a produção intelectual na União Soviética pós-revolução certamente influenciaram o desenvolvimento do pensamento de Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934) e também provocaram interpretações seletivas e publicações selecionadas de sua obra, na URSS e fora dela. O trabalho desse autor russo tão conhecido, apreciado e até obrigatório no modismo acadêmico atual permaneceu quase completamente ignorado no Ocidente até a década de 60. No Brasil, seus textos até agora publicados foram traduzidos do inglês, a partir de edições norte-americanas. Os problemas envolvidos na seleção e, sobretudo, na tradução dos textos do russo para o inglês e deste para o português são evidentes. Alia-se a isto o fato de que Vygotsky já trabalhava, ele próprio, com conceitos traduzidos para o russo a partir de obras escritas em outras línguas. Seria pertinente nos perguntarmos com que conceitos estamos de fato dialogando e que Vygotsky temos estado, de fato, lendo.
A publicação da obra de Vygotsky, em co-autoria com seu colaborador Alexander Romanovich Luria, "Estudos sobre a História do Comportamento: o Macaco, o Primitivo e a Criança" (a ser publicada nos próximos meses no Brasil pela editora Artes Médicas) ganha especial valor quando consideramos essa questão da fidelidade ao texto original e o problema da tradutibilidade das idéias. Embora tenhamos que enfrentar mais uma vez a dupla tradução russo-inglês-português e seus inevitáveis problemas, o trabalho cuidadosíssimo realizado pelos organizadores da obra nos EUA, Victor I. Golod e Jane E. Knox, contribui para a superação dos problemas conceituais na compreensão do texto dos autores russos.
Em sua longa e aprofundada introdução, Jane E. Knox discute algumas questões gerais relativas ao ambiente social e intelectual em que Vygotsky produziu e suas repercussões em nosso contexto contemporâneo, bem como tópicos mais específicos que auxiliam na interpretação de sua argumentação, como a relação de suas idéias com a dos autores a que ele se refere, a terminologia utilizada na perspectiva do início do século, os principais temas teóricos de interesse para as discussões atuais. Além disso, ao longo do livro, os editores apresentam inúmeras notas de rodapé e pequenos acréscimos no corpo do texto, que são resultado de verdadeiro trabalho de garimpagem: os autores mencionados por Vygotsky são identificados e localizados historicamente, as obras de onde suas citações foram retiradas são referidas na íntegra, as citações incompletas ou não literais são cotejadas com os textos originais, os vários grupos humanos e tribos referidos são localizados, os conceitos que apresentam alguma ambiguidade ou dificuldade de interpretação são discutidos e confrontados com reflexões contemporâneas. Os editores explicitam, na verdade, os caminhos da tradução da linguagem e do pensamento de Vygotsky, de forma a fornecer uma espécie de "chave de interpretação" para o leitor.
Em meio à profusão de obras de e sobre Vygotsky e seus colaboradores que vem sendo publicadas recentemente, esse livro destaca-se como um documento precioso, por dizer respeito exatamente a um dos tópicos mais centrais na abordagem vygotskiana: o desenvolvimento humano. Em três ensaios independentes (dois escritos por Vygotsky e o terceiro por Luria), publicados originalmente em 1930, os autores exploram separadamente os três planos genéticos que, interrelacionados, concorreriam para o desenvolvimento psicológico do ser humano: a filogênese, a sociogênese e a ontogênese. O primeiro ensaio focaliza o comportamento de primatas não-humanos, especificamente o chimpanzé, buscando explorar as características dos animais que seriam evidência do desenvolvimento inicial da espécie humana e, ao mesmo tempo, diferenciar o homem dos outros animais. Embora os chimpanzés já utilizem instrumentos (o que seria um pré-requisito para o desenvolvimento cultural humano), lhes falta o trabalho, como forma de relação com a natureza, e a capacidade de produzir e utilizar signos.
No segundo ensaio, o objetivo é compreender o desenvolvimento histórico da espécie humana, desde os primórdios de sua história cultural. Dada a impossibilidade de se obterem dados sobre os primeiros grupos humanos e seu funcionamento psicológico, a melhor fonte para esse estudo histórico seriam os chamados "grupos primitivos" existentes na atualidade. Baseado em dados sobre diversos grupos tribais estudados por etnógrafos, Vygotsky aprofunda a questão da transformação ocorrida nas relações entre linguagem e pensamento, na memória e nas operações numéricas ao longo do desenvolvimento cultural. Encontra-se nesse capítulo talvez a questão mais polêmica deste livro: embora procurando relativizar os conceitos, Vygotsky utiliza explicitamente a dicotomia primitivo/civilizado, muitas vezes aproximando sua argumentação de um evolucionismo cultural extremamente discutível atualmente.
No terceiro ensaio, Luria se move no campo mais ortodoxo da psicologia do desenvolvimento: a trajetória de desenvolvimento ao longo da vida individual, com particular ênfase na infância. Discute vários aspectos do desenvolvimento infantil (memória, atenção, abstração, linguagem e pensamento) e explora questões relativas à deficiência física e mental e à superdotação.
O diálogo denso e instigante que Vygotsky e Luria estabelecem com idéias e autores de seu tempo, ampliado e aprofundado pelo trabalho artesanal dos editores Victor Golod e Jane Knox, faz desse livro fonte especialmente relevante para a compreensão do pensamento desses teóricos russos e, ao mesmo tempo, um interlocutor extremamente vivo de nossas inquietações contemporâneas.

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